quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

A minha aldeia








Imagine-se, no século passado, uma pequena aldeia perdida nas serranias beirãs. Casas pequenas, esguias, construídas e amontoadas, para albergar famílias simples e numerosas que viviam do fraco sustento das terras circundantes. Sustento  insuficiente, que forçava os chefes dessas famílias  a procurarem, noutras zonas, a subsistência que a terra de origem lhes negava. Assim, na época das colheitas, rumavam às grandes herdades do Sul, de searas extensas e abundantes,  mas parcas em mão-de-obra.
Partiam, engajados e seduzidos pelo manajeiro que lhes prometera "uma jorna que não é má, duas refeições quentes por dia, uma pinga de vez em quando, tarimba e cobertores"1.
Para trás ficava a aldeia, alcandorada, nas  terras altas, que lhes permitia a visão até onde a vista, molhada de lágrimas, alcançava. Adeus, até à minha volta.


Esta palangana deve ter viajado com eles, os " Ratinhos", para as terras do Sul, bem protegida nos alforges que levavam ao ombro, à mistura com mantimentos e saudades. Terá, porventura, constituído moeda de troca por outros bens que lhes eram essenciais.
A decoração que enche o covo, mostra uma mão segura e rápida no delinear das casas, mas já cansada (?) e saturada no preencher do monte em que se observa a rudeza e a pressa nas pinceladas com que foi desenhado. Uma grinalda ondulada percorre a aba. Nas cartelas formadas por essa linha serpenteante, leves apontamentos em amarelo ocre. A cor que predomina é o manganés.


Imagem retirada da internet

Maioritariamente oriundos do distrito de Castelo Branco, alguns optavam por ficar. Fixavam-se nas novas terras, integrando-se, mas não esquecendo ou abandonando os seus costumes beirões. Vários locais do Alentejo testemunham essa permanência pelas múltiplas designações que para eles apontam: Monte dos Ratinhos de Baixo, Monte dos Ratinhos do Meio, Monte Novo dos Ratinhos 2.  
                



A decoração com construções arquitectónicas não é das mais vulgares. Mesmo rara. Os edifícios ora surgem quase isolados, ora rodeados de uma pequena paisagem, na qual em harmonia se integram. É o caso das palanganas que a seguir se apresentam.





Habitação única, talvez uma casa senhorial, onde as flâmulas estão hasteadas. Revela uma elaboração cuidada, como o demonstram o lançamento das linhas, o detalhe preciso e o conhecimento da noção de perspectiva. Nota-se que o traço é seguro e célere. A vegetação envolvente, leve e bem projectada, quadra perfeitamente com a ornamentação da cercadura. Uma linha perlada separa o covo da aba, marcando de forma distinta as duas decorações. Os tons únicos - verde e manganés - apontam para uma data de produção mais recuada - primeira metade do século XIX. 



Peça já dos finais do século passado, exibe uma decoração que preenche o covo na sua totalidade. O artista ensaiou uma tentativa de representação de uma paisagem. Ao centro, marcando bem a estrutura do esquema ornamental, uma árvore frondosa deixa ouvir o chilreio do pássaro que pousa no ramo mais próximo da casa. Na aba, numa cercadura de flores esponjadas, sobressai o quente do amarelo ocre.

Agradeço a cedência das peças que apresento.


1 - Adriano Pacheco "O povo ratinho". Lisboa, Edição Casa de Pedrogão Grande, 2005, pág.104.
2 - Aristides de Amorim Girão "Migrações Internas Estudos da População Portuguesa". Coimbra, Publicações do Centro de Estudos Geográficos da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 1948, Pág.17.














8 comentários:

  1. Cara Ivete Ferreira,

    Parabéns pela sua excelente postagem! Gostei imenso. As peças que apresenta são espectaculares,bela seleção e perfeita organização.

    Cada vez mais as peças "ratinhas" me fascinam e esta sua apresentação para tal contribuiu de forma significativa.

    Cumprimentos,
    Jorge Gomes

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  2. Caro Jorge Gomes

    Muito obrigada pelas suas palavras simpáticas e elogiosas.
    Os Ratinhos, quer as pessoas, quer as peças a que associam o seu nome, também me fascinam. Ainda bem que ajudei um pouco.

    Cumprimentos
    Ivete

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  3. Ivete,
    Gostei imenso do seu texto e fiquei deslumbrada com estes ratinhos!
    O primeiro é fora de série, com o uso exclusivo do manganés ao centro, mais carregado ou apenas sombreado naquele casario aldeão, e com o belo e singelo motivo da aba.
    Nos outros dois igualmente raros e genuínos, já há muito do verde que tanto me encanta e sempre casario ao centro em desenhos ingénuos, muito bonitos.
    Obrigada por nos trazer peças tão deslumbrantes e tão bem enquadradas pelo seu texto. Não esquecendo a generosidade e gosto de partilha de quem as cedeu.
    Um abraço

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  4. Maria A.
    De facto, nunca deixa de nos surpreender a criatividade dos artesãos de Coimbra. Aquele casario lembra as pequenas aldeias perdidas do interior, já tão desertificado.
    Os outros dois, também muito interessantes, são mais ingénuos, mostrando casas algo idealizadas, algumas com o seu que de senhorial.
    Um abraço
    If

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  5. Ivete

    Repito o conteúdo dos comentários do Jorge e da Maria Andrade. As peças são fantásticas e obrigado por partilha-las.

    Gostei do texto a acompanhar as imagens. Desconhecia que a presença dos ratinhos foi de tal maneira forte, que marcou a toponímia. Curiosamente, no Alentejo, uma região pouco povoada, ainda hoje se chama gente de fora para executar alguns trabalhos agrícolas. Parece que agora são romenos que apanham a azeitona.

    Um abraço

    Um abraço

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    1. Luís

      Gente tão humilde mas que se elevou à custa do seu trabalho esforçado. Deixou marcas nos lugares por onde passou.Contaram-me de casos de sucesso de Ratinhos ou seus descendentes, que chegaram longe, quer social, quer profissionalmente.Têm muito orgulho nas suas raízes e não as escondem. Pelo contrário, elevam-nas bem alto.
      Um abraço
      if

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  6. Qualquer destes pratos faria a delícia de qualquer amante de faiança.
    Gostei sobretudo de ler o que escreveu, pois não sabia de alguma desta informação.
    Daí a importância de visitar e conhecer cada vez mais e agradeço-lhe muito a partilha, por nos tornar mais conhecedores, e menos atreitos ao erro.
    Manel

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    1. Manel

      Os pratos são invulgares, quer pela decoração, quer pela dimensão. A ornamentação com casario é rara.
      Quanto às deambulações dos Ratinhos, principalmente pelo Sul, e às suas causas, também constituem um bom estudo social. Pena é que a bibliografia seja tão dispersa e escassa.

      Um abraço
      if

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