Este pequeno Menino Jesus, com o seu ar garoto e travesso, enternece, pela felicidade que a sua expressão irradia.
O meu primeiro contacto com as imagens de Malines deu-se por ocasião de um jantar em casa de pessoas amigas. Mais velhas e mais sabedoras, mostraram- nos (a mim e ao meu marido) uma Santa Catarina lindíssima, com a policromia original do séc. XV ou XVI quase intacta, e um traje rico, de influência oriental. Mais encanto tinha a história da sua aquisição, pelo facto de esta ter sido precedida por um despique muito vivo, travado entre eles e José Régio, que a tinha recusado quando, em primeiro lugar, lhe foi oferecida pelo ajuntador.
Durante o serão, não mais deixei de a olhar, face à crescente atracção que sobre mim exercia. Assim nasceu o meu gosto por estas imagens.
As palavras de Bernardo Ferrão são elucidativas para se compreender o significado e a importância que as esculturas de Malines tiveram, e têm, no panorama da arte sacra flamenga dos séculos XV e XVI: "Malines, cidade a muitos títulos ilustre do Brabante medievo e renascentista, foi com Antuérpia e Bruxelas um importantíssimo centro de artesanato artístico de imaginária sacra, destinada ao Ducado da Borgonha, aos países limítrofes e à exportação".
Altamente apreciadas, não só nos conventos, mas também entre a nobreza e a burguesia enriquecida, eram objecto de múltiplas e frequentes encomendas, tendo em vista um culto privado e íntimo, conventual e doméstico: quando de reduzidas dimensões, eram especialmente apropriadas para integrarem pequenos oratórios, onde constituiam motivo de devoção.
Nas variadas oficinas de santeiros, produziam-se pequenas imagens, umas de vulto inteiro, ou seja, as que são integralmente esculpidas, e que se diferenciam das demais, que não têm a parte de trás trabalhada e se destinavam a ser unicamente vistas de frente.
A maior parte delas é consagrada a Nossa Senhora - representadas com ou sem o Menino Jesus - mas também a Santos e outras figuras da Igreja.
A escala das imagens era diversificada, podendo, contudo, aceitar-se um binómio essencial: as peças de menor porte, que variavam entre 16 e 38 cm, nas quais se enquadra o exemplar que, neste post, é objecto de caracterização e as de grandes dimensões, de temática mariana ou cristológica, destinadas prevalentemente a ser alvo de adoração pública e que podiam exceder um metro de altura.
Foram muito apreciadas, nomeadamente nas Ilhas Atlânticas e outras zonas que os Portugueses - e também os Espanhóis - contactaram. Pela difusão que lhes foi dada e, principalmente, pela ternura e afectividade que enlaçavam, foram recolhidas por muitos particulares, para as suas colecções, e constituem um segmento destacado de exposição, em muitos museus.
O Menino Jesus que apresento tem uma dimensão de 22 cm e assenta numa peanha, que lhe confere um pouco mais de presença.
Apresenta-se de pé, nu, mostrando uma leve torção do corpo, resultante da posição dos pés. A perna direita, ligeiramente avançada, torna as coxas mais roliças.
Nas costas, direitas, sobressaem as nádegas, muito apertadas.
A falta de parte dos braços não lhe tira a graça. Imaginamo-lo, segurando o mundo na mão esquerda e abençoando com a direita...
Percebe-se bem, na sua expressão, o carácter flamengo que os artesãos conferiam à fisionomia destas imagens: um ar risonho, uma expressão optimista. Fronte ampla, rosto oval largo, olhos amendoados e boca esboçando um leve sorriso.
Outra das características próprias destas imagens é o tratamento dado ao cabelo. Mais agarrado à nuca, vai-se progressivamente espraiando em redor do rosto, formando como que uma auréola. Na fronte, dois caracóis simétricos.
Havia, ainda, imagens mais imponentes, porventura destinadas a altares de maior projecção, como a que se segue, pertencente à colecção do Museu de Arte Sacra do Funchal.
É uma figura que mostra uma serenidade de expressão e uma graça nos seus cabelos, que quase faz esquecer a ausência de braços. Tem uma altura de 47 cm, dimensão rara nas representações do Menino.
Conclui-se esta exposição, com um traço de especial curiosidade histórica e exotismo, apresentando a imagem de um Menino Jesus que é objecto de fervorosa devoção pelos católicos filipinos. É, também, proveniente das oficinas de Malines e originou o culto "Del Niño de Cebu", na ilha de Cebu, nas Filipinas. A pequena imagem, com cerca de 12 cm de altura, terá sido oferecida à rainha local, em 1521, por Fernão de Magalhães e encontra-se adornada ao gosto espanhol.
Imagem retirada da internet |
Fontes: FERRÃO, Bernardo - Imagens de Malines in Estudos Sobre Escultura e Escultores do Norte da Europa em Portugal .
Arte Flamenga - Museu de Arte Sacra do Funchal
Cara Ivete parabéns pelo post num tema tão interessante,acredito ainda muito desconhecido. Falo por mim que gosto de arte sacra, já me tinha interrogado sobre o formato rechonchudo das imagens -,o conhecimento veio pela mão do LuísY do Velharias quando abordou o tema.
ResponderEliminarFascina-se a sua escrita pelo despertar de histórias com história como -,"Mais encanto tinha a história da sua aquisição, pelo facto de esta ter sido precedida por um despique muito vivo travado entre eles e José Régio, que a tinha recusado quando, em primeiro lugar, lhe foi oferecida pelo ajuntador."
Simplesmente magestal!
O José Régio supostamente gostava de Cristos na Cruz e do Santo António...estas imagens faziam-no lembrar coxas roliças de mulheres...andante pelos montes alentejanos no seu burro com um criado para as adquirir -, não queria pecar...o que me apraz dizer sabendo que foi um grande colecionador.
Adorei!
Beijos
Isabel
Ivete,
ResponderEliminarO menino pode ter um ar travesso mas é muito bonito.
BJ
Ana
EliminarTem razão, é muito bonito, mas aquele sorriso travesso ainda lhe dá maior encanto.
Bj
Ivete
Dra. Ivete, boa noite,
ResponderEliminarApenas para lhe dar os parabéns pelo seu excelente blog e, não tendo melhor meio para o fazer, servir-me deste seu espaço para lhe agradecer pelo empréstimo autorizado da sua obra, na posse do nosso amigo comum. Quando passarem em Coimbra não se esqueçam de nos visitar. Um abraço, Cristina e João
Cara Ivete
ResponderEliminarEstas esculturas de Malines são um encanto. Se já as apreciava antes, consigo aprendi a ter uma pequena paixão por estas estatuetas flamengas, que os portugueses importaram na época dos Descobrimentos. Julgo que acabaram por influenciar de algum modo a arte sacra portuguesa, em particular o nosso gosto muito pronunciado pelas figuras do Menino Jesus.
Um abraço e obrigado pela partilha
Caro Luís
EliminarEstas imagens têm o seu quê de encanto e mistério. As suas formas tão características identificam-nos bem. Saber apreciar estas imagens é um processo algo moroso mas, uma vez enraizado, nunca mais se perde. A sua influência na arte sacra, na pintura e na estatuária, foi muito importante e consumou-se quer com a vinda de artistas flamengos para Portugal, quer com a ida de artistas portugueses para a Flandres.
Um abraço.
Cara Ivete,
ResponderEliminarMuito obrigada pela partilha de um dos seus pequenos tesouros.
Uma peça destas não pode deixar de encantar qualquer um, mas particularmente quem se interessa por objetos carregados de história.
Com a origem conhecida e estudada, fica-se sempre a pensar em qual o caminho percorrido por este roliço corpinho de menino, desde a velha Flandres nos alvores da Idade Moderna até chegar nos dias de hoje a uma casa portuguesa... Se é verdade que este raciocínio se pode fazer para qualquer peça antiga, perante uma figura humana tão ternurenta surge quase inevitavelmente. Quantas gerações venerararam este Menino Jesus, o cuidaram, vestiram e despiram, quantas crianças o quiseram ter nas suas mãozinhas, tendo ele assistido ao desenrolar das suas vidas...
Ando há dias para vir aqui comentar, não podia deixar de o fazer, mas imaginava-a muito ocupada e sem tempo para dar assistência ao blogue e por isso fui adiando, mas finalmente tive notícias... :)
Um abraço
Cara Maria
EliminarMuito obrigada pelas suas palavras.
O Menino, com o seu ar travesso, ganha uma dimensão mais humana. As sua formas, roliças, trazem à lembrança as fotografias dos bébés gordinhos, tiradas em estúdio,nus e exibindo os caracóis orgulhosos.
Tem toda a razão. Quantas gerações não o terão venerado, quem sabe num pequeno altar, ou numa maquineta, muito bem resguardado,para chegar até aos dias de hoje em condições de ser, por nós, admirado.
Um abraço
Este Menino Jesus consta do livro do Dr. Bernardo Ferrão, que em Portugal constitui a autêntica bíblia da escultura flamenga do séc. XVI?
ResponderEliminarCaro anónimo
ResponderEliminarRealmente, este Menino jesus não consta do Livro de Bernardo Ferrão mas, pela sua graça e sorriso, equipara-se a alguns dos que lá se podem observar.
Cumprimentos