quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Um prato de rendas


Um prato do século XVII, decoração "rendas"

Proponho-me abordar neste texto um tema decorativo de manufactura portuguesa - a faiança de rendas.
As Artes Decorativas, nas suas diversas vertentes, desde sempre se influenciaram mutuamente, quer nas formas, quer nas composições decorativas. Vem isto a propósito da decoração de rendas, que se pode ver e apreciar em algumas peças da nossa faiança do século XVII.
As rendas, oriundas da China ou da Índia (?), entraram no mundo europeu, no século XV, pela mão de Veneza. A Sereníssima, tornou-se num centro afamado de produção textil de rendas. A sua influência vai espalhar-se para outros países, nomeadamente a Itália e Flandres.Os seus artesãos eram contratados para trabalharem nas novas manufacturas que se iam criando nessas regiões.
Arte de uma paciência infinita, ensinada nos conventos, vai ornamentar altares e as elegantes toilettes da nobreza e do clero.
Imagem retirada da Net
Os modelos, primorosamente traçados, chegam ao conhecimento dos artistas através dos álbuns de desenhos que circulam pela Europa. As diversas artes decorativas, naturalmente, colhem aí um tema de inspiração. A sua adaptação enriquece a estética decorativa  das peças onde são aplicadas.
De um modo geral, as peças de " Decoração de Rendas" podem ser datadas da segunda metade do século XVII, . Uma possível fonte de inspiração podem ter sido as golas e punhos rendados dos trajes masculinos e femininos, usados, quer no século XVI, quer no seguinte.


A produção das faianças com decoração de influência oriental teve, numa fase inicial - a primeira metade do séc. XVII - o mercado europeu como destino, nomeadamente, a Alemanha. Inúmeros exemplares existentes nos museus, assim o comprovam. A pintura, muito cuidada, e o esmalte leve e fino denotam que os artesãos conheciam bem as peças originais chinesas, que tomavam como modelo. Mais tarde, com a concorrência da faiança de Delft, a nossa produção torna-se menos cuidada, destinando-se, quase exclusivamente, ao mercado interno.

Com a individualização dos elementos decorativos - as espirais, as contas, os aranhões, as rendas, o desenho miúdo, a faixa barroca -  houve a tendência para os caracterizar por famílias decorativas. Foi o caso da "decoração da família  das rendas, constituída por sequências de meios arcos concêntricos dispostos linearmente e atravessados por feixes de raios terminados em pintas"1.




Prato inteiramente decorado a azul, vivendo da riqueza dos esbatidos. No covo, uma cruz central envolta numa primeira faixa de rendas. Aba com duas cintas semelhantes. 


Exemplar pertencente à Casa-Museu Guerra Junqueiro
Este prato mostra uma decoração de rendas, limitada por uma linha ondulada, que emoldura um conjunto de flores. Cercadura também com o mesmo padrão, em tons de azul cobalto e roxo vinoso. Estas peças, pela qualidade da sua execução e pelo modo como estão conservadas, indiciam uma origem mais aristocrática. O seu uso devia ser mais esporádico e restrito a momentos solenes. 


Diversamente, produziram-se também artefactos utilitários, de pequenas dimensões e com formas mais comuns. Para o conhecimento deste tipo de peças têm contribuído as escavações arqueológicas realizadas um pouco por todo o mundo e que atestam a presença portuguesa nessas zonas (Alemanha, Cabo Verde, Brasil, Caraíbas, Estados Unidos, Canadá).

MNSR



Canudo de farmácia ou boião de botica, destinado a conter produtos farmacêuticos, neste caso Goma Armoníaco. Apresenta uma forma tubular, com uma gola elevada e encurvada, com uma ornamentação de faixas paralelas de rendas. Entre elas a inscrição, numa cartela, G. ARMONI.




Dois pucarinhos com decoração de rendas. Em ambos, o bojo, em calota rebaixada, assenta num frete reentrante e elevado. O colo é alto e cilíndrico. Duas pequenas asas salientes, de perfil auricular.

Por último, dois conjuntos, de grande raridade, formados por quatro azulejos, onde é presente, também, o motivo das rendas.




Agradeço aos seus proprietários a permissão que nos concedeu para a divulgação das suas peças neste post. Bem hajam.


1-Catálogo "Exposição de Faianças Portuguesas de Farmácia", 1972, p.16
Rafael Salinas Calado "Faiança Portuguesa da Casa-Museu Guerra Junqueiro século XVII/XVIII, 2003
Rafael Salinas Calado " Faiança portuguesa 1600-1660", edição MNE, Secretaria de Estado da Cultura e Amsterdams Historisch Museum de Amerterdam,1987
Miguel Cabral de Moncada "Faiança Portuguesa Séc.XVI a Séc.XVIII", 2008
Rita Carole Dedeyan " L'Europe en Dentelles", 1989

6 comentários:

  1. Gostei muito do seu post. Não fazia a menor ideia que a técnica das rendas nos chegou da China. As faianças que mostrou são um espanto. Creio que esta decoração das rendas é de todo a minha preferida.

    A Maria Andrade há pouco tempo mostrou uma capelinha no Buçaco que tinha uns azulejos de renda. http://artelivrosevelharias.blogspot.pt/2012/11/frontais-de-altar-do-bucaco.html. Julgo que estão na sétima fotografia.

    O mais curioso é que este painel serão os cantos que não se conseguem ver nos azulejos mostrados pela nossa Maria Andrade

    Um abraço

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    1. Luís
      O motivo das rendas também é o meu preferido. Lembra-me as mãos prendadas das mulheres que fazem renda, tantas vezes sem para elas olharem e que nos dão verdadeiras maravilhas.
      Fui relembrar o post da Maria Andrade sobre os frontais de altar. Tem razão, os azulejos são com o motivo rendas.
      Um abraço

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  2. Ivete, eu nunca tinha visto um prato de rendas com uma decoração tão rica como este dos três círculos concêntricos, verdadeiramente espetacular! Nos canudos já me é mais familiar a repetição do motivo, mas não nos pratos.
    Adorei a história sobre o percurso das rendas a partir da China e pensei logo nas nossas rendas de bilros (tenho-as assim a formar arcos, parecidas com estes desenhos) que julgo nos chegaram via Flandres.
    Também fiquei encantada com as quadras de azulejos e, como o Luís, fiquei rendida a esta decoração.
    Quanto aos azulejos de rendas dos frontais do Buçaco que o Luís refere, não são deste tipo, mas sim cantoneiras de formato retangular. Agora tenho pena de não os ter fotografado mais em pormenor.
    Abraços

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  3. Maria Andrade

    Também nunca tinha visto um prato de rendas com uma decoração tão rica e cheia de leveza. Recordam aqueles pequenos "naperons", de várias formas e feitios, que se vão juntando nas gavetas dos aparadores e que, apesar do encanto, não se coadunam com as novas decorações minimalistas e tão sem cor.
    Tenho alguns e ando a pensar que destino lhes hei-de dar. De certeza que não vou seguir a Joana de Vasconcelos...
    Abraços

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  4. Muito bem !!! Só gostaria que me comentassem a proveniencia da penultima quadra de azulejos por favor ... É de facto muitissimo rara ... tao rara que sendo arqueologo á mais de 40 anos SÓ uma unica vez pude observar este conjunto ... creio que é o mesmo !! gostaria de saber onde pára ? MUITO OBRIGADO...

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  5. Caro anónimo
    Agradeço o seu comentário. A quadra de azulejos a que se refere pertence a um particular, que gentilmente me cedeu a fotografia do mesmo e me permitiu a sua divulgação. Foi adquirido a um antiquário.
    if

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