terça-feira, 10 de junho de 2014

Registo de Santo António


O Passeio de Santo António

Saíra Santo António do convento
A dar o seu passeio costumado
E a decorar, num tom rezado e lento
Um cândido sermão sobre o pecado.

Andando, andando sempre, repetia
O divino sermão piedoso e brando,
E nem notou que a tarde esmorecia
Que vinha a noite plácida baixando.

E andando, andando sempre, viu-se num outeiro
Com árvores e casas espalhadas,
Que ficava distante do mosteiro
Uma légua das fartas, das puxadas.

Surpreendido por se ver tão longe,
E fraco por haver andado tanto,
Sentou-se a descansar o bom do monge, 
Com a resignação de quem é santo...

O luar, um luar claríssimo nasceu, 
Num raio dessa linda claridade,
O menino Jesus baixou do céu,
Pôs-se a brincar com o capuz do frade.

Perto, uma bica de água murmurante
Juntava o seu murmúrio ao dos pinhais...
Os rouxinóis ouviam-se distante,
O luar, mais alto, iluminava mais.

De braço dado, para a fonte, vinha
Um par de noivos todo satisfeito,
Ela trazia ao ombro a cantarinha, 
Ele trazia...o coração no peito.

Sem suspeitarem de que alguém os visse,
Trocaram beijos ao luar tranquilo.
O menino, porém, ouviu e disse:
- Oh Frei António, o que foi aquilo?

O santo, erguendo a manga de burel
Para tapar o noivo e a namorada,
Mentiu numa voz doce como mel:
-Não sei que fosse. Eu cá não ouvi nada.

Uma risada límpida, sonora,
Vibrou em notas de ouro no caminho.
-Ouviste, Frei António? Ouviste agora?
-Ouvi, Senhor, ouvi. É um passarinho...

-Tu não estás com a cabeça boa...
Um passarinho a cantar assim!...
E o pobre Santo António de Lisboa
calou-se embaraçado, mas por fim,

Corado como as vestes dos cardeais, 
Achou esta saída redentora:
- Se o Menino Jesus pergunta mais,
... Queixo-me à sua mãe, Nossa Senhora!

Voltando-lhe a carinha contra a luz
E contra aquele amor sem casamento,
Pegou-lhe ao colo e acrescentou:- Jesus
                                                   São horas...
                   E abalaram para o convento.
                                                                Augusto Gil




Em época de Santo António, entendi justificar-se uma representação que a ele - figura que penetra tão profunda e transversalmente no imaginário da sociedade portuguesa -  respeita.
Num oratório, estaria este pequeno registo de cerâmica, executado em forma de coração,  idealizado pelo coração puro de uma freira, que assim via, afectuosamente, os santos da sua devoção.
O Menino, ao colo de Sua Mãe, estende os braços para Santo António. Trata-se de um trabalho conventual, minucioso e delicado. As suas  pequenas dimensões, e todo o interior, requereram mãos primorosas, de artista, capazes de conceber, com graça ingénua, uma decoração tão subtil.
A forma de coração - ideal da afectividade - e o material duradouro em que foi concebido simbolizam, na perfeição, a perenidade da aliança emocional e estética entre o sagrado e o humano.

O coração humano pulsa. O coração de barro, em chamas, mostra a fé ardente e pura de quem o moldou. Esvaziado do seu conteúdo terreno, amorosamente foi  preenchido com uma composição poética, de pequenas flores e cabeças de anjos que envolvem as figuras sagradas e santas. A sua ingenuidade comove. Toca-nos e deixa-nos sem palavras. A capacidade de expressão foge, ficando a beleza de um voto de fé, de alguém, de um qualquer convento, que assim se manifestou. 




Este exemplar, um dos vários de uma colecção que a seu tempo mostrarei, vai integrar, em data breve, a exposição do Museu Antoniano, a propósito das celebrações de Santo António de Lisboa.


Moldado como  um verdadeiro coração, a que não faltam as veias e artérias, mostra duas pequenas aletas, expressando as chamas que incendeiam de fé e amor espiritual os que o contemplam. Ao jeito dos registos e a rematar o trabalho da sua autora, uma fita de passamanaria e uma renda envolvem toda a estrutura. 


Estas singelas obras-primas, manifestações artísticas elaboradas na serenidade da vida conventual, eram, muitas vezes, oferecidas às visitas, quando, em dia de abertura ao exterior, lhes era permitido contactar com familiares e amigos.
Como sempre, agradeço a disponibilidade manifestada para a partilha e publicação destas imagens. 






5 comentários:

  1. Uma peça especial de devoção a Santo António neste seu dia tão festejado aí em Lisboa.
    E que bela introdução, este poema tão ternurento de Augusto Gil que recordo na voz de João Villaret!
    O registo é um primor de originalidade e de minúcia! A par daquele trabalho mimoso e delicado da cena religiosa, admiro o invólucro de barro e questiono-me se tais peças de olaria seriam feitas nos próprios conventos ou encomendados a oleiros locais.
    Resulta um todo cheio de simbolismo místico e de autenticidade.
    Obrigada por ter aqui dado a conhecer uma peça tão rara e encantadora.
    Um abraço

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  2. Maria A.
    É uma peça digna de um museu. Vista como um todo e apreciando o conjunto em pormenor, é uma delícia. As pequeninas figuras, o gesto do Menino e inclinar-se para Santo António, os anjinhos e as flores, tudo aponta para a paciência infinita de umas mãos habilidosas. Quanto à peça de cerâmica, também admito que possa ter sido feita no próprio convento. A escassa bibliografia não nos dá essa resposta.
    A colecção é de uma rara beleza.
    Um abraço
    if

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  3. Ivete,

    Paz e Saúde.

    Não repare em meu sumiço. Na verdade apenas dos cmts porque sempre venho aos blogs dos amigos e se não deixo uma palavrinha é porque, muitas vezes, dependendo do post, sou ainda iniciante demais ou totalmente ignorante.
    A riqueza cultural de seu país é maravilhosa e com tantos aspectos.
    Por isso, só me atrevo quando me iniciei neste ou naquele assunto.
    As vezes também, deixo comentários em retribuição aos mesmos. Mas sempre visito os blogs conhecidos.

    Santo Antônio é especial para mim. Minha cidade, no interior do Rio se chama "Santo Antônio de Pádua".. Bem que podia ser "de Lisboa".
    Estas montagens dos conventos já conheço um pouco. Herança direta daí.
    Aqui foi em Salvador, a primeira capital, onde mais floresceram: Meninos, altares em miniaturas, em ouro recortado, papel dourado, conchas e mais conchas, asas de todo inseto, botões de vidro e de toda cor e até diamantes em caco... e ainda muito mais coisas brilhantes e miúdas, que não sei como se arranjavam nos conventos de "claustro fundo..." e longe de tudo. Por estes dias adquiri um Menino do Monte com carneirinhos, fonte e conchinhas e quando testei o resplendor, a cruz e a flâmula eram de ouro, como suspeitava e não simples metal como indicavam... Mas comprei pelo modelo e motivo (imaginária conventual baiana).

    Este coração com Santo Antônio é uma beleza. E a pequena cena de Nossa senhora a entregar-lhe o Menino é uma graça.

    Já notei que postamos por motivações bem diversas. Penso que Vc seja mais altruísta e vai às Artes e expressões culturais ou de época por seu valor maior: inserido numa comunidade, na história. Acho muito legal.
    Eu ainda estou com a mania de postar somente peças do que tenho como "acervo" ou coleção pessoal. É uma forma de registro, de "tombamento". Se assim não fosse, ficaríamos frustrados muitas vezes pela falta de retorno ou apreciação dos amigos. Mas meu trecho de cmt ao início justifica muitas vezes esta falta de apreciação, comentários...

    Estimo que esta ideia do Museu fecunde e floresça. Será maravilhoso ver o "Santo" em seus mil retratos e incontáveis milagres...

    Um abração.

    Estou ainda com um post de Arte Sacra. Há, especialmente, uma pintura em miniatura que tenho como uma joia... De uma olhadinha e se souber alguma coisa, pode falar.
    E por aí Vcs gostam de Futebol? Torci por sua seleção e ainda dá para torcer.

    Amarildo

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    1. Amarildo
      Muito obrigada pelas suas simpáticas palavras. Também gosto de visitar o seu blog e nem sempre comento, como o Amarildo, quando não me sinto à vontade no tema abordado. Pelo que deixa transparecer nas suas publicações, deve ser uma pessoa particularmente sensível à arte sacra.
      Quanto ao registo de Santo António é uma peça invulgar, quer pelo material, quer pela forma que apresenta. Na mesma colecção existem mais alguns exemplares que, oportunamente, mostrarei.
      Um abraço
      if

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  4. Olá,
    Estou a iniciar-me na escrita em blogs e felicito-a.Gosto mto do tema St António.Espero q tenha oportunidade de vir ver o atelier em Samora Correia e tabalho desenvolvido sobre o tema pela ceramista Nazaré.Bjs
    Marta

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