segunda-feira, 14 de julho de 2014

Uma flor...uma bonita flor






Uma flor
Uma pequena flor,
Eu colhi
Estava a pensar em ti
(...)
Entre Aspas, "Edelweiss", 1997



Uma flor... Uma flor oferecida...  Uma flor para a enamorada...

Um original prato de faiança coimbrã, provável produção de Brioso - precursora da Faiança Ratinha-, demonstrativo da ingénua fantasia do oleiro que o executou. Ornamentação sui generis, com um par amoroso, em que o homem oferece uma flor, num gesto enamorado, em que transparece a sua afeição pela formosa (?) dama.
O par, trajando à moda de finais do século XVIII, ele de calção, meia branca e casaco cintado, ela de saia e sobressaia, com anquinhas e um decote muito pronunciado e malicioso, mostra uma certa incongruência nas formas. A mulher, mais alta, ocupa metade do covo, estendendo-se para a aba. Podemos pressupor que deve ter sido delineada em primeiro lugar, pelo espaço mais reduzido  que o seu par ocupa. A fim de obstar à sua menor estatura, o pintor teve que altear a base onde ambos assentam, a fim de que as suas faces  ficassem ao mesmo nível visual. É interessante o facto de os corpos se encontrarem de frente para os espectadores, mas as caras se apresentarem de perfil. Numa composição bicromática, unicamente nos tons azul cobalto e manganés, conseguiu-se uma decoração rica de pormenores, mas ingénua nos seus traços gerais. Uma ornamentação formada por pequenas cartelas, cheias com filamentos cruzados, enriquece a aba.





A designação "Brioso" provém de um ceramista oleiro de Coimbra, António da Costa Brioso,  identificado nos finais do século XIX, por António Augusto Gonçalves. A produção de Coimbra, de finais do século XVIII, de melhor qualidade era, genericamente, atribuída a Vandelli. Porém, no momento em que se descobriu uma pequena travessa, datada e assinada "Brioso, 1779", as dúvidas desfizeram-se: a manufactura de Brioso antecedia, em cinco anos, a fundação da fábrica de Vandelli. 
Ironizando - e contribuindo, também, para dilucidar a situação Brioso/Vandelli -, é de evocar o seguinte trecho, escrito por uma das freiras mais novas do Mosteiro de Lorvão, D. Inês Benedita, aquando de um infeliz acidente, em que um bule, tido em grande estima pela sua possuidora, se quebrou:  "Não foi, senhora, no distante clima da China, ordinária pátria dos bules, que nasceu o meu herói; Coimbra, esta lusa Athenas de Portugal, lhe serviu de berço, e para que nascesse logo com avultados brios, contam os historiadores que foi Brioso o seu augusto projenitor. Brioso, este homem, que despresou a aliança com a illma. fabrica de Vandelli, que o pretendeu para consorte, e só achou a exma sra D. Olaria digna esposa a seus altos merecimentos, sendo inumeravel a descendência que deu a todo o reino e fora d'ele. Foi sempre o ellmo sr. D. Bule de Barros (de quem choramos hoje a perda), o filho mais dilecto do seu coração, vendo-se desde a infância tão melindroso como vidrento e fazendo biquinho a tudo quanto via. Ele receia embarca-lo para a América ou expô-lo nas lojas à censura do publico"1.





1 - Charles Lepierre "Ceramica Portuguesa Moderna", Lisboa, 1899, págs: 235 e 236.
Alexandre Pais, António Pacheco, João Coroado "Cerâmica de Coimbra", Edições Inapa, 2007
"Estudo sobre o Estado Actual da Industria Cerâmica", Lisboa, Imprensa Nacional, 1905.




6 comentários:

  1. Que peça fantástica de faiança coimbrã! Um regalo para os olhos!
    E realmente muito típica do que se atribui à produção Brioso, muito bem ilustrada pela história do bule de D. Inês Benedita.
    Obrigada pela partilha.
    Um abraço

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Maria Clara

      A faiança produzida por Brioso identifica-se quase de imediato. Esta peça tem a particularidade de representar um par, o que penso ser raro. Remete-nos, de imediato, para uma cena de galanteria - a oferta de uma flor.
      A história de D. Bule de Barros, vidrento e fazendo biquinho, é uma delícia.
      Um abraço
      if

      Eliminar
  2. A forma de representação humana com a cara de perfil (no entanto o olho tem uma representação frontal), os corpos de frente (por vezes a três quartos), as pernas em vista lateral, o que aqui é visível na posição dos pés calçados, poderá estar relacionado com alguma dificuldade que alguns artistas menos conhecedores da forma de representação humana experimentavam, como, na antiguidade, era o caso da representação egípcia, minóica, e a qual se estendeu até ao período grego (veja-se a representação da figura humana na decoração da cerâmica grega).
    No caso da representação egípcia o rosto era de perfil (mas, tal como aqui, o olho também é representado em posição frontal), o torso frontal, as pernas e pés novamente de perfil.
    Há uma certa analogia entre as duas formas de representação.

    Tal como refere, e aqui concordo consigo, primeiro deve ter sido pintada a figura feminina e só depois a masculina - vê-se muitas vezes esta diferença de volume no desenho infantil. Phillippe Greig, psiquiatra e psicoterapeuta, estudioso do desenho infantil, descreve desenhos do denominado "idade de ouro do desenvolvimento gráfico" da criança (de 4 a 6 anos), onde as formas e representações possuem um dimensionamento diferente, não porque a criança não saiba que uma coisa é maior que outra, mas porque na sua mente as coisas estão dotadas de um afeiçoamento afetivo diferenciado. São maiores as coisas que com a criança estão mais relacionadas.
    E as formas estão relacionadas com formas geométricas fundamentais - triângulos, círculos, quadrados/retângulos, como é o caso dos trajos destas figuras - o homem com triângulos e a mulher com formas compostas de triângulos e bocados de círculo.
    Não quero com isto dizer que a figura tenha sido criada por uma criança, mas que o desenho de artistas com menor formação neste campo pode ter influências acentuadas do desenho infantil.
    Também, e esta é uma teoria muito minha, da qual não tenho qualquer confirmação, nem conheço estudos neste sentido, tenho alguma desconfiança que a decoração destas peças de cerâmicas pode ter sido elaborada por gente bastante jovem, a qual deve ter aprendido com os adultos alguma destreza ao nível do desenho e coloração, mas que depois era deixada com alguma liberdade na decoração das peças.
    Mas esta minha teoria não passa mesmo disso - é um "tiro no escuro" uma teoria sem qualquer confirmação.
    No entanto, seja lá quem desenhou a decoração desta peça, ela é absolutamente deslumbrante.
    Agradeço-lhe a partilha
    Manel

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Manel
      Agradeço as informações que tanto contribuíram para esclarecer alguns aspectos do post.
      Também me parece que, dada a ingenuidade de alguns dos traços, esses podem ser atribuídos a pintores mais inexperientes, quem sabe ainda bastante novos que, orientados pelos mais velhos, podem ter completado a composição decorativa. O delinear dos rostos e das mãos denotam segurança e firmeza, apontando para um esboço de outro pintor que, executada a parte mais difícil do esquema, posteriormente entregou a sua finalização a um aprendiz.
      Ivete
      ,

      Eliminar
  3. Gostei muito de poder ver um prato atribuído ao célebre Brioso e adorei a história da Soror Inês Benedita.

    Apreciei muito as considerações do Manel. Talvez quem estude cerâmica de carácter mais popular tenha mesmo que recorrer à psicologia.

    Há qualquer coisa de brejeiro neste prato, talvez por causa do decote atrevido da Senhora ou da expressão libidinosa do Cavalheiro. Parece-me talvez uma pantomina aos trajes e costumes da fidalguia, mas se calhar já estou a deixar-me levar pela imaginação. Em todo o caso, parece-me certo que este prato pretendia contar uma história ou retratar uma situação.

    Um abraço

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Luís

      A história da Soror Inês Benedita retrata, com muito humor e graça, a situação da perda de um bule, talvez um bem precioso, para quem vivia na clausura dos conventos.
      Também penso que há um certo ar mais atrevido na caracterização da senhora, que se apresenta com um decote mais arrojado e que atrai, de modo indiscutível, o olhar do cavalheiro. Os pensamentos deste, se bem que arrojados, não impediram o seu gesto galante de oferecer a flor.

      Um abraço
      if

      Eliminar