sexta-feira, 15 de maio de 2015

As vilas operárias




Imagem de Lisboa tirada do  miradouro da Igreja da Graça. De uma das suas  colinas a vista foge e alcança um panorama único, quiçá irrepetível.
Num destes últimos sábados fui conhecer a Graça operária. Bairro tradicional e de características muito próprias, se o  percorremos com o coração aberto, revela-se, deixando perceber a riqueza que guarda dentro de si.
O surto industrial de meados do século XIX originou uma súbita e urgente necessidade de mão-de-obra. Para a colmatar recorreu-se às gentes do interior. Ao crescente afluxo de pessoas que acorriam a uma ilusória melhoria de vida não correspondia a cidade com um parque edificado que oferecesse condições mínimas de habitabilidade. A cidade crescera, tendo-se desenvolvido para novos bairros  e zonas como Estefânia, Campolide, Campo de Ourique, Almirante Reis e Avenidas Novas. Embora a construção  de casas nessa novas zonas fosse mais barata, ainda assim os salários auferidos pelos operários não permitiam o seu arrendamento.
Numa tentativa de solucionar o problema e também com intuitos sanitários - impedir, nomeadamente, a propagação da tuberculose - que poderia afectar a população de uma forma cega, vão ser procuradas soluções. Adaptam-se antigos palácios ou conventos, transformando-os em habitações para as pessoas de mais fracos recursos, ou vão construir-se casas, de baixo custo, algumas devidas à iniciativa privada, de modo a permitir o seu arrendamento pelos operários e, ao mesmo tempo, assegurar  rentabilidade aos seus construtores.




Esta vila é conhecida pela designação de pátio do Barbosa por ter pertencido a Francisco Barbosa. Propriedade que foi  dos Senhores da Trofa, o palácio mantém a sua fachada seiscentista. O acesso ao pátio faz-se pelo portal, que ainda mostra sinais da sua imponência. No interior, as casas distribuem-se em  redor do que foi, possivelmente, o pátio de honra. Ainda podemos ver o que resta da antiga cisterna.


Pátio do Barbosa
Imagem retirada da internet


Uma forma diferenciada de vilas, também aproveitando um antigo palácio, se bem que reabilitado, inteiramente revestido de azulejos verdes, fica no Largo da Graça, nº32. Com entrada directa para a rua, o acesso para o interior faz-se por um largo portal em ferro forjado que ostenta orgulhosamente a data de 1890 e o nome pelo qual é conhecida - Villa Sousa.





Esta vila tinha dois objectivos: arrendamento à pequena burguesia industrial e comercial, bem como a funcionários públicos ou membros do exército de baixa patente e, evidentemente, aos operários. A parte que dava directamente para a rua era ocupada pela elite do operariado ou do funcionalismo público e, no interior, nas casas que rodeavam o largo, vivia a "classe laboriosa" que, alegre e ruidosamente, reproduzia o modus vivendi das suas aldeias longínquas. Um corredor largo e com alguma magnificência de construção, como se pode constatar pelos tectos de estuque e a escadaria de acesso às habitações de melhor qualidade.






Outro tipo de vilas, como a Vila Berta, em que a construção é mais cuidada, já com  preocupações de beleza e conforto. Apresenta-se com duas entradas distintas, dispondo-se as residências ao longo de toda uma rua. A sua edificação ficou a dever-se  à iniciativa do seu fundador e construtor, Joaquim Francisco Tojal, brasileiro, filho de emigrantes portugueses, que regressa a Portugal, em finais do século XIX.




Foi-lhe atribuído o nome de família, como se pode verificar pelo belo painel de azulejos Arte Nova e pela tabuleta afixada na parede do prédio. Acabada em 1908, foi ocupada pela família, parentes e amigos formando um pequeno grupo social, coeso e intimista, que não era habitual existir numa grande cidade.



Nos topos da rua ficavam a casa do proprietário, tipo chalet, com telhados amansardados e varanda assente num conjunto de cachorros. No topo oposto, um edifício da quatro andares, dando acesso à Rua do Sol à Graça, através de um arco. Está ornamentada, também,  com azulejos Arte Nova.




A vila desenvolve-se ao longo da rua, com duas bandas de casas, em correnteza. Num lado têm dois andares. No outro três. A originalidade destas habitações está nas suas varandas de ferro, formando pequenos terraços. Toda a rua respira tranquilidade.





Este texto já vai longo, mas não é possível deixar de abordar mais dois exemplos de vilas existentes na freguesia da Graça.São eles  a Vila Rodrigues e o Bairro Estrela d'Ouro.
A primeira, típica vila operária, situa-se nas traseiras de um grupo de prédios, de melhor qualidade arquitectónica. O acesso faz-se por um portão lateral que exibe o nome Vila Rodrigues.






Depois de dobrar o cotovelo formado pela rua, onde um pequeno cão, rafeiro barulhento e belicoso, nos deu as boas vindas chegámos à vila propriamente dita. O grupo edificado tem dois conjuntos paralelos de casas. O acesso faz-se exteriormente por galerias e varandas em ferro, demonstrativas das modernas tecnologias de construção da época, 1902. A falta de terrenos provocou  a sobreocupação dos poucos existentes. Com esta sobrelotação de edifícios pretendia obter-se uma elevada  rentabilização. Uma área mínima, para uma máxima ocupação.




O Bairro Estrela d'Ouro situa-se na freguesia da Graça. A sua construção deve-se à iniciativa de um industrial galego, Agapito Serra Fernandes.


Família de Agapito Serra Fernandes
Imagem retirada da internet
Foi um planeamento pensado e executado pelo arquitecto Norte Junior  tendo em conta as necessidades da própria família do fundador, bem como os alojamentos para os trabalhadores.             Conta-se que a estrela, de cinco pontas, presente na ornamentação e nos pormenores   decorativos patentes em todo o conjunto era um elemento significativo para o industrial galego.    
                               
                           


                                         


A moradia principal, com belos painéis de azulejos Arte Nova, era casa de habitação da família. As casas estavam dispostas em forma de U, alinhadas ao longo das ruas. O acesso exterior, faz-se por escadarias e varandas em ferro.




Este é um pequeno grande pormenor que deve ter sido acrescentado posteriormente. No jardim da casa principal, onde hoje está instalado um Lar de Idosos da Misericórdia, foi construído um banco todo revestido com azulejos pombalinos. Qual terá sido o seu primitivo local de origem?






Nuno Teotónio Pereira -"Pátios e vilas de Lisboa 1870-1830", Análise Social, vol.XXIX, 1994.
Sónia Cristina Ildefonso Pinto -"Vilas operárias em Lisboa, Emergência de novos modos de habitar. O caso da Vila Berta". Dissertação de Mestrado em Arquitectura, IST, Universidade Técnica de Lisboa, Novembro de 2008.





8 comentários:

  1. Ivete,
    Imagino o prazer que lhe deu percorrer estas ruas antigas da sua cidade, vestindo em simultâneo a pele de turista e de investigadora, a descobrir, a fotografar, a discorrer, recolhendo matéria para publicar aqui um trabalho muito interessante.
    Escusado será dizer que os olhos me ficaram no banco azulejado da última foto... :)
    É esta a graça das cidades antigas: encontram-se camadas de várias épocas, convivendo em beleza, se estiverem minimamente preservadas.
    Grata pela partilha de uma zona que está fora dos circuitos habituais.
    Abraços

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    1. Foi um passeio que me deu imenso prazer.Calcorrear ruas de Lisboa e apreciá-las com outros olhos, entender o espírito que presidiu à construção deste tipo de habitações, tendo em conta as necessidades das pessoas ( arrendatários, construtores e senhorios), bem como as da própria cidade. Há uma vida de bairro dentro de um bairro tão característico como é a Graça.

      Um abraço
      Ivete

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  2. Ivete, o estudo desta tipologia é interessantíssimo. Foi um dos meus trabalhos em História da Arquitetura portuguesa, quando estudei este assunto há mais de 30 anos atrás, e foi uma descoberta inesperada, pois, um pouco por toda a cidade há salpicos deste tipo de habitação, que tem sobrevivido sabe-se lá como.
    Neste momento habito numa parte da cidade que guarda variados restos desta tipologia de habitação, se bem que não tão bem conservados como os bairros operários da Graça, não obstante a proximidade.
    E, há uma década atrás habitava uma parte da cidade que ficava paredes meias com o Bairro Grandela, a S. domingos de Benfica, que se aburguesou.
    Seria uma coisa interessantíssima, digo eu, porque me apaixonam estes assuntos, fazer um apanhado da organização interior destas habitações, ou talvez até exista já, só que não o conheço.
    Gostei muito deste seu post.
    Uma boa semana
    Manel

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    1. Manel

      Este tipo de construções são casos de muito interesse, não só na vertente da arquitectura, como pelo estudo sociológico que lhes está subjacente. A Graça é uma zona muito característica da cidade pois concentra, numa relativa proximidade, diversos tipos de vilas operárias. Muitas mais imagens havia, mas a parcimónia impunha-se, para não alongar muito o texto.
      Se percorrermos outros bairros encontramos mais exemplos dessas construções tão típicas dos finais do século XIX e primeiras décadas do XX.

      Um abraço
      Ivete

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  3. Ivete

    Só agora vi este seu post sobre as vilas operárias da Graça. Quando me casei morei ali muito perto da Graça, em S. Vicente de Fora e conheci muitas destas vilas, que são encantadoras. Confesso, que se tivesse dinheiro, a Vila Berta seria um dos meus lugares de eleição para viver.

    Mas há mais bairros destes pela cidade fora e alguns deles a sua existência é quase secreta. Perto de mim, na antiga freguesia da Pena, existe um desses bairros, com casinhas de um lado e outro e que são servidas pela Rua Joaquina, que termina, abruptamente sobre o vale da Av. da Liberdade, com uma vista de cortar a respiração. Se um dia passar por lá, terei muito gosto em lhe mostrar a poética rua Joaquina.

    Também mesmo no topo do morro da Penha de França, há uns anos existia uma vilazinha operária, muito arruinada e abandonada, mas com uma vista assombrosa. Nem sei se já não caiu toda.

    Enfim, tudo isto são desafios, para fazer uma sequela deste post.

    Um abraço

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  4. Luís

    São pequenos grandes recantos que se encontram pela cidade, bem escondidos e recatados das vistas daqueles que caminham com olhos ausentes. Surpreendem-nos pela sua graça e ingenuidade, mas plenos de história e de histórias.
    Para além de muitos destes bairros espalhados pela cidade há uma rua, de que não sei o nome, que me toca especialmente: é a ladeira por onde transita o elevador do Lavra. Tem umas varandas de ferro, azuis, se me não engano, que são uma delícia.
    Aí também não me importava de viver. Sonhos!!!

    Um abraço

    if

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  5. Ivete

    Conheço perfeitamente essa calçada com uns prédios com umas varandas fantásticas, nas quais nos imaginamos ao fim da tarde, sentados a tomar uma bebida e a ver Lisboa e o Tejo lá ao fundo. Esse é outro dos sítios onde me imagino a viver (tenho uma enorme lista desses locais). É certo que numa rua daquelas é melhor vender o automóvel e carregar com as compras do Pingo Doce deve ter que se lhe diga. Em todo o caso, são casas às quais nos afeiçoamos e nos apaixonamos.

    Um abraço

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  6. Olá

    Estou a preparar uma reportagem sobre as antigas vilas operárias. Conhecem quem tenha lá vivido? Sobretudo na Vila da Bela Vista, Pátio Paulo Jorge e Vila Romão da Silva...


    deixo o meu email para o caso de conhecerem alguém: anamarisesilva@gmail.com


    cumprimentos,
    Marisa Silva

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