Em tempos mais recuados, nas missas dominicais, era usual o gesto de tocar com os dedos na água benta que as pequenas pias, como as acima representadas, continham. Estas, maiores ou menores, de diferentes materiais, encontravam-se à entrada das naves paroquiais. Tal gesto, tinha como finalidade concretizar o sinal da cruz, destinado a purificar o corpo e a mente, recordando-nos a santidade do local onde entrávamos. Pretendiam, também, recordar as práticas da primitiva igreja cristã que, na tradição de outras religiões, que a cristã conservou, tinham, à entrada dos seus templos, grandes recipientes com água, para os sacerdotes e os fiéis se purificarem, antes de iniciarem ou participarem nos ritos religiosos.
As duas pias de água benta representadas, senhoras de muita graciosidade e beleza, quer nas formas, quer no relevado e na cor, lembram aos homens o fim para que foram executadas - conter água benzida pelo sacerdote, para que todos pudessem, simbolicamente, através do gesto de reviver o sinal da cruz, entrar de alma pura para assistir ao ofício divino.
Nos seus escassos 22 cm de altura, mostram a grandeza das mãos rudes que as criaram. Ambas aludem ao martírio de Cristo - a Crucificação. Ambas mostram caldeiras gomadas, em forma de cúpula invertida, e espaldares relevados e recortados. Vivem do contraste do azul profundo, com o branco etéreo do esmalte com que foram cobertas.
In Artur de Sandão "Faiança Portuguesa séculos
XVIII/XIX", vol.1, pág. 55
Atribuir a sua produção a um determinado centro é difícil e não se pode fazer de ânimo leve. No entanto, por comparação com exemplares publicados em obras de referência, como é o caso de Artur de Sandão, talvez não seja um grande atrevimento, podermos apontar indícios ao centro coimbrão, famoso pela produção de faiança. O autor situa o seu fabrico em Coimbra. Formato, tamanho, policromia serão, quiçá, elementos que se podem ter em conta para localizar a sua produção nas olarias conimbricenses, com provável datação em finais do século XVIII (???).
A produção de faiança nas olarias de Lisboa, de finais do século XVII e primórdios do XVIII, conhecida pela designação de Monte Sinai, atribuída por José Queiroz e que entrou no léxico de quem se interessa pelo estudo da faiança portuguesa, influenciou grandemente as peças produzidas em Coimbra.
In "Faiança Portuguesa séc. XVI a XVIII", pág.133 Miguel Cabral de Moncada |
Três pias de água benta representando Nossa Senhora com o Menino, Santo António com o Menino e a Cruz alusiva ao martírio de Cristo, encimando o espaldar um anjo barroco. É patente a influência da talha portuguesa nas colunas que ladeiam as composições. Igualmente enriquecidas pelo contraste do branco leitoso com o azul profundo, realçado pelo esbatido cromático dos azuis.
Num pequeno artigo escrito por Matos Sequeira na Revista da Feira da Ladra, no ano de 1935 acerca do espólio cerâmico encontrado num vazadouro do antigo mosteiro do Santo Crucifixo das Capuchinhas da Bretanha, carinhosamente conhecido por Convento das Francesinhas, numa clara alusão à origem das suas fundadoras, faz-se referência ao aparecimento de fragmentos de pias de água benta.
Este convento foi fundado por D. Maria Francisca Isabel de Saboia, princesa da casa real francesa, que casou com D. Afonso VI. Com ela vieram quatro freiras que iriam fundar a casa conventual. Demolido o edifício em 1911, os terrenos por ele ocupados serviram de base para a construção de uma réplica de um bairro antigo de Lisboa, integrado nas festas da cidade, no ano de 1935. Quando se procedia ao arranjo do terreno, foi descoberto um subterrâneo cheio de "cacos", demonstrativos da vida quotidiana das freiras que ali tinham vivido. Entre as muitas peças encontradas havia fragmentos de pias de água benta, tanto das olarias alfacinhas, como da faiança de Brioso.
Uma das invocações religiosas mais veneradas e queridas em Portugal é a de N. Srª. da Conceição, como podemos concluir pelas que imagens que seguem. Duas pias de água benta completas, com caldeira e espaldar, conservadas intactas, apesar da sua fragilidade. Atribuídas à produção de Brioso, possui, uma delas a inscrição N.S.
Ambas apresentam uma policromia em tons de azul cobalto e roxo vinoso. Os espaldares mostram um enquadramento relevado, estando as imagens inscritas em altares, com colunas vazadas e espiraladas. A primeira está encimada por um querubim e a segunda possui um frontão com a a inscrição IHS.
"Feira da Ladra", Revista Mensal Ilustrada, Tomo sétimo, 1935.
Miguel Cabral de Mondaca, "Faiança Portuguesa séc. XVI a XVIII", 2009.
José Queirós " Cerâmica Portuguesa e Outros Estudos", Editorial Presença, 1987.
Alexandre Pais, António Pacheco, João Coroado " Cerâmica de Coimbra", 2007.
Em Primeiro lugar, desejo-lhe uma boa Páscoa.
ResponderEliminarO tema das pias de água-benta veio muito a propósito da época em que estamos.
Gosto destas pias de água-benta atribuídas a Coimbra. pintadas com um azul muito forte e por vezes de uma forma meia trapalhona. Acho que aliás a graça delas é um certo ar tosco.
Tenho ideia que estas pias de água-benta serviam oratórios individuais. Em casa da minha da família da minha mãe, existia uma que estava colocada num oratório no quarto. Creio que era hábito das pessoas devotas trazerem água benzida da igreja em garrafas para a verterem nestas pias. Essa pia que era da família da minha mãe e que hoje está em minha casa ainda tem as marcas do lodo de tanta água benta que conteve. Julgo que as própria irmãs tinham estas pias nas suas celas, junto a um crucifixo, ou a um Menino Jesus pelo qual tinham uma devoção mais forte.
Um abraço e obrigado por partilhar peças tão bonitas
Luís
ResponderEliminarAs pias de água benta adequam-se perfeitamente à época pascal. Embora seja uma quadra que mostra o lado menos bom dos homens, surpreende-nos pelo que o lado bom dos homens foi capaz de expressar em objectos tão singelos e simples como as pias de água benta. É verdade que era costume trazer água benzida dos locais de peregrinação que se visitavam, a que, muitas vezes, atribuíam virtudes milagrosas. Esse costume ainda se não perdeu. Conheço pessoas que levam, nas viagens de avião, frascos com essa água virtuosa, para que os livre de acidentes e quaisquer problemas.
Um abraço
if
Creio que gosto especialmente das pias de água benta pela religiosidade íntima que acarretam consigo, pela tradição, sobretudo atribuída ao sexo feminino, de preocupação em manter algum tipo de culto no espaço privado da casa.
ResponderEliminarEsta religiosidade é cativante, e é nestas alturas que tenho uma certa pena de ser agnóstico teísta.
Sinto alguma nostalgia pelo facto de ser um objeto caído em desuso.
Uma boa semana
Manel
Manel
ResponderEliminarEstas peças, pelo seu tamanho, forma e policromia agradam visualmente. O fim específico a que se destinavam também lhes confere uma certa aura de religiosidade que lhes está implícita.
if