Noblesse oblige!
Os excelentes textos publicados sobre esta faiança pela Maria Andrade e pelo Luís Montalvão tiveram o efeito de despertar em mim o interesse por esta fábrica e pela sua produção. Quer em leilões, quer em feiras de velharias e antiguidades, o meu olhar, agora mais direccionado, fez-me cobiçar algumas peças. Foi o caso desta terrina e deste galheteiro que, pela pasta mais fina, pelo azul cobalto, pelo esmalte brilhante, poderão ser atribuídos (?) a Miragaia.
João da Rocha, natural de Sabadim, Arcos de Valdevez, regressado do Brasil, onde enriquecera, fundou e construiu a sua fábrica em terrenos anexos à Igreja de Miragaia. A sua laboração iniciou-se em 1775. Para tal, "contratou três oficiais que vieram do Rio de Janeiro, dois da fábrica do Rato e quatro da de Massarelos, todos eles portugueses e por consentimento dos proprietários das respectivas fábricas"1. Após a sua morte, em 1779, o seu sobrinho e herdeiro, João da Rocha Soares, vai tomar a direcção da fábrica, depois de regressar do Brasil. Em 1827 (2) ou 1830 (3), e para fazer face à crescente concorrência da porcelana inglesa, introduziu-se a produção de louça em "formas, imitando-se os respectivos tipos estrangeiros, sobretudo os ingleses"4. Segundo Vasco Valente, corresponde ao segundo período de laboração da fábrica, compreendido entre 1827 e 1840. Passa, nesta fase, a produzir "faiança tipo inglês, esmalte estanífero branco, pintura monocroma azul, sobre decalque obtido pelo processo de gravura em cobre"5.
É a este período que correspondem as marcas MP ou Miragaia/Porto, por vezes envolvidas em ramos de louro.
Esta terrina moldada, de forma oval, com o bojo arredondado e colo baixo, apresenta alguns elementos que indiciam uma possível (?) produção de Miragaia. A decoração pintada e estampilhada, completada com alguns elementos de execução manual, revela a influência oriental nas construções, uma delas coberta com cúpula, rodeada por vegetação exuberante. A paisagem está inserida numa cartela, que se destaca pela cor forte do azul que a envolve. As diferentes nuances dos azuis, permitem uma noção de perspectiva e profundidade. Limita-a, na parte inferior, uma palma .
Um pormenor delicioso nas asas: dois pássaros, afrontados, talvez simbolizando um casal de noivos, porquanto era usual, em algumas regiões, oferecer peças de faiança como prenda de noivado.
Neste pequeno galheteiro, com galhetas desiguais, embora de ornamentação idêntica, sobressaem as flores que caracterizam e apontam, com grande probabilidade, para o segundo período da produção de Miragaia, balizado, como se disse, entre 1822-1850. Apesar da dissonância das galhetas, o cômputo geral agrada pela elegância, pela dimensão e pelas cores.
Constituído por base com duas partes circulares, onde encaixam as galhetas, de base arredondada, estreitecendo e terminando num elegante bico. A base apresenta, ainda, uma pequena caldeira, com tampa canelada. A pega, de forma auricular, sustenta toda esta estrutura. A decoração de flores brancas, num fundo azul, é semelhante à de muitas peças assacadas a esta fábrica.
Adquirido num leilão, onde parecia perdido e a pedir que lhe dessem uma oportunidade de brilhar e de fazer valer os seus direitos de peça "genuína miragaiense" (?), quando chegou e enfrentou os galheteiros congéneres não se coibiu de gritar bem alto, com o seu belo sotaque tripeiro, a sua genealogia: sou de Miragaia (?)! Sou de Miragaia (?)! Nasci do trabalho conjunto das mãos capazes do oleiro e das mãos prodigiosas do pintor, que me deram esta forma delicada e estas cores, que lembram o azul do mar, em dias de calmaria.
1/3/4 - Luís Augusto de Oliveira, " Exposição Restropectiva da Cerâmica Nacional em Viana do Castelo", Porto, 1920, pág: 127 e 128.
2/5 - Vasco Valente "Cerâmica Artística Portuense dos séculos XVIII e XIX, pág. 72.
Fábrica de Louça de Miragaia, MNSR, Porto, 2008.
João da Rocha, natural de Sabadim, Arcos de Valdevez, regressado do Brasil, onde enriquecera, fundou e construiu a sua fábrica em terrenos anexos à Igreja de Miragaia. A sua laboração iniciou-se em 1775. Para tal, "contratou três oficiais que vieram do Rio de Janeiro, dois da fábrica do Rato e quatro da de Massarelos, todos eles portugueses e por consentimento dos proprietários das respectivas fábricas"1. Após a sua morte, em 1779, o seu sobrinho e herdeiro, João da Rocha Soares, vai tomar a direcção da fábrica, depois de regressar do Brasil. Em 1827 (2) ou 1830 (3), e para fazer face à crescente concorrência da porcelana inglesa, introduziu-se a produção de louça em "formas, imitando-se os respectivos tipos estrangeiros, sobretudo os ingleses"4. Segundo Vasco Valente, corresponde ao segundo período de laboração da fábrica, compreendido entre 1827 e 1840. Passa, nesta fase, a produzir "faiança tipo inglês, esmalte estanífero branco, pintura monocroma azul, sobre decalque obtido pelo processo de gravura em cobre"5.
Fábrica de Louça de Miragaia, pág. 216 |
É a este período que correspondem as marcas MP ou Miragaia/Porto, por vezes envolvidas em ramos de louro.
Esta terrina moldada, de forma oval, com o bojo arredondado e colo baixo, apresenta alguns elementos que indiciam uma possível (?) produção de Miragaia. A decoração pintada e estampilhada, completada com alguns elementos de execução manual, revela a influência oriental nas construções, uma delas coberta com cúpula, rodeada por vegetação exuberante. A paisagem está inserida numa cartela, que se destaca pela cor forte do azul que a envolve. As diferentes nuances dos azuis, permitem uma noção de perspectiva e profundidade. Limita-a, na parte inferior, uma palma .
A tampa mostra a mesma composição decorativa. Remata com uma pega em forma de flor, inserida num conjunto de pétalas relevadas. Os azuis degradés enriquecem a composição decorativa.
Neste pequeno galheteiro, com galhetas desiguais, embora de ornamentação idêntica, sobressaem as flores que caracterizam e apontam, com grande probabilidade, para o segundo período da produção de Miragaia, balizado, como se disse, entre 1822-1850. Apesar da dissonância das galhetas, o cômputo geral agrada pela elegância, pela dimensão e pelas cores.
Constituído por base com duas partes circulares, onde encaixam as galhetas, de base arredondada, estreitecendo e terminando num elegante bico. A base apresenta, ainda, uma pequena caldeira, com tampa canelada. A pega, de forma auricular, sustenta toda esta estrutura. A decoração de flores brancas, num fundo azul, é semelhante à de muitas peças assacadas a esta fábrica.
Adquirido num leilão, onde parecia perdido e a pedir que lhe dessem uma oportunidade de brilhar e de fazer valer os seus direitos de peça "genuína miragaiense" (?), quando chegou e enfrentou os galheteiros congéneres não se coibiu de gritar bem alto, com o seu belo sotaque tripeiro, a sua genealogia: sou de Miragaia (?)! Sou de Miragaia (?)! Nasci do trabalho conjunto das mãos capazes do oleiro e das mãos prodigiosas do pintor, que me deram esta forma delicada e estas cores, que lembram o azul do mar, em dias de calmaria.
1/3/4 - Luís Augusto de Oliveira, " Exposição Restropectiva da Cerâmica Nacional em Viana do Castelo", Porto, 1920, pág: 127 e 128.
2/5 - Vasco Valente "Cerâmica Artística Portuense dos séculos XVIII e XIX, pág. 72.
Fábrica de Louça de Miragaia, MNSR, Porto, 2008.
Realmente não se pode deixar um galheteirinho destes a falar sozinho num qualquer recanto de uma leiloeira!!! Fez muito bem em levá-lo consigo, tendo ainda por cima um certo caráter e ar de família!
ResponderEliminarÉ do mesmo formato e tem decoração semelhante à de um que mostrei há tempos, mas as flores do seu exemplar, à exceção de uma das galhetas, são mais miragaienses...
E a terrina é outro um mimo com que nos encanta o olhar! Nunca tinha visto pegas assim e quanto ao motivo, identificamos-lhe a origem que deixou escola, Miragaia, mas há diferenças notórias nos pormenores, que me deixaram intrigada. O azul vivo da tampa numa das fotos faz-me lembrar a produção de Santo António e a pega tenho-a também numa tampa destes motivos, mas vá-se lá saber...
Belas aquisições! Parabéns!
Um abraço
Concordo consigo em pleno. Quando alguém nos faz um pedido com tanto empenho, dirigindo-nos uma poderosa mensagem telepática, não podemos ficar indiferentes. E não é que se integrou lindamente no conjunto, talvez até, sobressaindo pelo seu colorido.
ResponderEliminarQuando vi o seu, fiquei cheia de vontade de ter um e o leilão veio no momento certo.
É muito semelhante ao seu: na forma, na decoração, no colorido. Pena é que não tenham a marca. Quem sabe, um dia destes.
A terrina é muito bonita e ganha força integrada entre outras peças de faiança. O que me agradou mais foram os pássaros das asas. Recordou-me um prato ratinho e os bordados de algumas colchas de Castelo Branco, com decoração semelhante. Será que há influências?
Um abraço
if
Bem, cara IF, não há dúvida nenhuma que é uma pessoa de muito bom gosto e com olho para descobrir peças fantásticas de faiança. As pegas da terrina são fabulosas!!!
ResponderEliminarSabe, eu comecei o meu blog precisamente por causa do mistério de Miragaia. Via em todas feiras de velharias e antiquários peças de cantão populares dadas como Miragaia e depois quando ia aos museus, o que encontrava marcado como Miragaia não tinha nada a ver com as tais peças à venda dos mercados de antiguidades e desde então comecei a ler, ver exposições e uma vez aproveitando um assunto de serviço até telefonei para o Porto e falei com a conservadora de cerâmica do Soares dos Reis para conversar sobre Miragaia e tirar dúvidas.
Tenho uma opinião pessoal, que não é fundamentada, de que Miragaia teve um enorme prestígio no seu tempo e que foi copiada por um sem número de fábricas de faiança. O Manuel tem umas quantas peças de faianças todas elas inspiradas na série País de Miragaia. Não são Miragaia, porque não estão marcadas, nem são iguais às peças mostradas no catálogo da exposição de 2008, mas a fonte de inspiração é a mesma, a série País. Mais, embora todas copiem o mesmo motivo, percebe-se que são de fábricas diferentes.
Quanto à sua terrina, que é uma peça deslumbrante, parece-me ser um desses casos. Ela não se parece exactamente com nenhuma das peças mostradas no catálogo de Miragaia de 2008, mas não há dúvida que quem a fabricou usou como fonte de inspiração a série País. Enfim, todos já sabemos que estas fábricas do Porto e de Gaia eram todas vizinhas e que havia uma circulação entre elas de mestres, moldes, técnicas e pintores. Havia até laços familiares entre os diversos patrões.
Claro, também podemos pensar, que o catálogo de Miragaia não mostrou tudo. Haverá peças marcadas em colecções particulares e de pequenos museus que por lá não constam e que a produção da fábrica será ainda mais variada, até porque Miragaia não marcou todas as peças.
Sabe, a sua terrina recorda-me uma caneca que o Manuel tem. Numa apresentação que houve no MNAA sobre Santo António de vale da Piedade, mostraram um caco achado nas escavações da Fábrica igual ao da caneca do meu amigo. Aliás, estou à espera que publiquem as actas desse congresso de faiança para confirmar se a imagem desse caco corresponde à caneca do Manel.
Bem toda esta conversa, é para lhe dizer que me me parece que a sua terrina, será de uma dessas fábricas vizinhas de Miragaia, talvez de uma daquelas que receberam os operários da manufactura da família de Rocha Soares quando esta acabou.
Claro, tudo isto que lhe escrevo são meros tiros no escuro e em faiança poucas vezes podemos ter certezas.
Em todo o caso, a sua terrina muito tripeira é um regalo para a vista e um bom exemplo do quanto a faiança portuguesa é fascinante.
Um abraço e parabéns pelo post
Luís
EliminarTambém sou da sua opinião. A permuta de artistas entre as diversas fábricas que, levando os seus modelos e desenhos, aliados à sua experiência, tivessem alguma influência na produção das novas peças. É natural, com toda a certeza, que reproduzissem a decoração a que estavam habituados. É o caso da terrina. Embora apresenta um certo ar de família a Miragaia - tonalidade dos azuis, esmalte brilhante, alguma fidelidade no desenho -, mostra diferenças e inovações, principalmente na ornamentação.
Miragaia teve uma produção muito própria e marcante.
Um abraço
if
Já a outra estrela do seu post, o Galheteiro, parece-me Miragaia sem muitas dúvidas
ResponderEliminarEstas suas peças são lindíssimas.
ResponderEliminarEntão esta terrina ... deixá-la em qualquer sítio, seja lá onde for, para ser levada por alguém que não lhe daria o devido valor, seria um pecado capital.
Ainda bem que foi parar a sua casa - na minha também não ficaria mal ;-) ... hehehe
As asas desta terrina são verdadeiramente fantásticas.
Quanto ao edifício parece-se muito com os que aparecem em Miragaia, mas vendo bem a qualidade de representação desta construção arquitetural fico com algumas reticências.
Mas, como diz o Luís, os pintores andavam de fábrica para fábrica, levando desenhos consigo e copiando-os, pelo que um motivo passa a integrar a produção de outra um pouco mais afastada.
Por outro lado, o dono de Miragaia esteve à frente de outras fábricas que produziram motivo semelhantes, como foi o caso de Sto. António, por isso, sabe-se lá de onde ela veio.
Também é verdade que junto a Miragaia funcionou, nos últimos anos da sua existência, uma espécie de entreposto onde se vendiam louças de muitas fábricas da região, como consta no catálogo de Miragaia, por isso, nada mais natural que se influenciassem uns aos outros.
Se bem que Miragaia teve sempre uma qualidade que a distinguia das suas congéneres, acusando influências mais eruditas, como as francesas e, posteriormente, após a queda de Napoleão, inglesas.
Mas é uma verdadeira preciosidade esta sua peça.
Quanto ao seu galheteiro, as florinhas parecem-se muito com as que encontro em Miragaia, assim como a própria estrutura, de acordo com o que a Maria Andrade já mostrou e já aqui foi referido, pelo que não é nada descabido dar-lhe essa origem.
Claro que certeza, bem ... não há, mas há muitas hipóteses que o seja.
São as ambas as peças de fazer qualquer amante de faiança ficar encantado com o que vê.
Ainda bem que partilhou, pois é importante perceber o que se vê disponível no mercado e extrapolar, ainda que de forma mais ou menos precisa, a região de origem, pois a fábrica, bem, esta torna-se mais difícil.
Manel
Manel
EliminarAgradeço o seu comentário tão bem fundamentado, aliás como todos os que escreve. A sua opinião, bem como a de todos os que se interessam por faiança, é importante para abrir pistas que levem aos esclarecimentos e certezas que todos gostaríamos de ter.
Com muitas comparações de peças e alguma experiência que se vai adquirindo, um dia se fará luz sobre este tema.
Quanto à produção nortenha, penso que não há muitas dúvidas. Quanto à fábrica, lá haveremos de chegar.
if