quarta-feira, 8 de abril de 2015

As Bellas na Faiança Ratinha





E, num ápice, chegou o segundo aniversário deste blog. Para  celebrar a efeméride!!! revelam-se algumas peças de Faiança Ratinha que se destacam do panorama habitual de  peças desta espécie.de faiança. Palanganas de rara beleza - pelo motivo ornamental, paleta cromática e técnica de pintura - (elevam e) demonstram a categoria dos seus executantes que, com grande probabilidade, colheram inspiração em fontes mais arcaicas, possivelmente álbuns de gravuras que circulavam pelo meio artístico e a que puderam ter acesso. 
Numa clara demonstração ao horror vacui - herança e influência prováveis da cerâmica de Iznik -,a superfície  a decorar cobre-se de uma sinfonia de ritmo e cor. 




Na Faiança Ratinha, devido à fraca qualidade da louça, os artistas utilizavam a técnica do desenho livre, pintando directamente "a traços largos, com pincéis macios"1.
Nestas duas peças, a "técnica do desenho livre alcança elevada expressão"2. Representam-se dois bustos femininos, de perfil. O corpo, em forma de coração, é delineado por traços e aguadas que lhes conferem profundidade. O realce salienta-se nos rostos. As "características faciais, testa alta, pescoço esguio, nariz curvilíneo, olhos grandes e rasgados, sobrancelhas espessas"3  levantam a hipótese de ter havido uma grande proximidade entre artistas, uma vez que há traços muitos equivalentes no desenhar da linha do rosto. Diferem nos ornamentos de cabeça. A senhora desenhada na primeira das peças que se apresentam exibe um chapéu a lembrar a caça, pela sua aba revirada a que não deverá faltar uma pena, se bem que invisível, dada a sua posição de perfil. A outra senhora, numa clara inspiração renascentista, ostenta uma coifa (?), enfeitada com plumas, jóias e um conjunto ornamental de difícil caracterização e especificação.
Inscrevem-se num enquadramento vegetalista, obtido pelo recurso à técnica do esponjado.

A produção da faiança coimbrã vai conhecer o seu apogeu durante o século XVIII tendo sido executadas peças com as mais variadas formas e motivos. Em finais do século, destaca-se, dentre  os oleiros produtores de cerâmica, a família Brioso. As peças que se apresentam, de uma colecção particular, poderão ser atribuídas à  produção de Brioso.





Diferindo nas cores, em que foram usados o azul e o manganés, aproximam-se na composição decorativa. O mesmo rosto de perfil, testa alta e olhos amendoados, na qual de destaca a coifa, ajustada ao tamanho da cabeça. Também nestas peças se recorreu ao uso do desenho livre e da técnica do esponjado para finalizar o esquema decorativo, obedecendo à regra do preenchimento quase total da superfície a ornamentar.
Esta temática das representações de bustos de senhora, conhecida como as Bellas, terá origem italiana. Estará, porventura, associada "ao retrato das mulheres mais bonitas das cidades onde estes objectos eram produzidos e o seu intuito estava relacionado com o namoro, sendo ofertas de homens apaixonados para aquelas que eram devedoras da sua afeição"4. 

PCV, Leilão nº 45, 1999

PCV, Lote 57, Outubro 2010

As Bellas são peças raras. Quando surgem, em leilão, como é o caso das anteriores, atingem preços muito altos. As imagens destas Bellas denotam diferenças no seu tratamento, principalmente nas faces e nas coifas. Talvez um pequeno aprendiz de pintor, encantado com a delicadeza do tema, se tenha aventurado a esboçar o desenho, mas escondendo a sua autoria, receando uma reprimenda. Imaginamos que o seu mestre, divertido com a sua ousadia, deixou que a peça seguisse o seu caminho. Para bem de todos, chegou até nós.


1 - Charles Lepierre "Estudo Chimico e Technologico sobre a Ceramica Portugueza Moderna". Lisboa, Imprensa Nacional, 1899, Pág.122.
2/3 - Ivete Ferreira "Os Ratinhos Cerâmica Portuguesa de Cariz Popular". Tese de mestrado, Escola das Artes, Universidade Católica Portuguesa, Lisboa, 2007, Vol. I, Pág.119.
4 - Alexandre Pais, António Pacheco, João Coroado "Cerâmica de Coimbra". Lisboa, Edições Inapa, 2007, pág.75.






6 comentários:

  1. Ivete

    Que bela maneira de comemorar o aniversário do seu blog. As peças que apresenta são raras, só as entrevemos nos leilões e nos museus ou nas boas colecções particulares.

    É curioso que quando olho para estas peças só me lembro de algumas decorações da renascença, como aquelas cabeças que espreitam da Porta Especiosa em Coimbra ou os grotescos da arte ornamental. São como que uma versão popular desses motivos.

    Um abraço e parabéns pelo aniversário do seu blog, um espaço um encontramos sempre informações rigorosas e óptimas peças.

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    1. Luís

      Muito obrigada pelas suas palavras sempre amáveis. Procuro apresentar peças que despertem o interesse e que os textos que as acompanham sejam o mais possível claros e fidedignos. Concordo com o Luís quando invoca as decorações da Renascença. Lembrei-me de ter visto a imagem de um vaso encontrado, aquando da realização de obras de restauro, numa abóbada do Claustro de Santa Cruz de Coimbra e datado de 1558. Lateralmente mostra um medalhão com o busto de uma senhora,de perfil com um toucado de inspiração renascentista. Será a interpretação popular desses temas, como muito bem refere.

      Um abraço

      if

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  2. E que comemoração Ivete! Com estas peças não necessita de mais nada!
    São peças de museu e um encanto para o olhar e um texto claro e fidedigno!
    Concordo com o Luís ao reparar num possível parentesco destas figuras com a arte da Renascença.
    Fazem-me também lembrar alguns espécimes que estão patentes do Museu de Artes Decorativas de Barcelona, onde se apresenta uma fantástica coleção de cerâmica espanhola antiga.
    Afinal os artistas vão buscar inspiração sempre ao mesmo sítio.
    Por isso a a história, e em particular a de arte, são tão importantes para compreender a origem do que é produzido.

    Os parabéns pelo aniversário e espero que continue por muitos e bons anos, pois não é comum encontrar nos blogs da net dedicados à cerâmica, esta informação fidedigna e rigorosa com que habitualmente nos brinda.
    Conheço este seu, o do Luís, o da Maria Andrade, o da Maria Paula e há igualmente o blog do Jorge Amaral que tem tido um percurso curioso a que vou prestando atenção.
    Mais uma vez os parabéns pro este seu espaço

    Manel

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    1. Manel
      Agradeço as suas palavras elogiosas e simpáticas.
      Também já visitei, há alguns anos,o Museu de Artes Decorativas de Barcelona. É muito grande e bem apresentado. Para o fim, por ter uma colecção muito grande e vasta, o cansaço já não deixava apreciar devidamente a riqueza das peças expostas. Merece uma outra visita, com mais tempo e já com outra visão, mais apurada.

      Um abraço

      if

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  3. Muitos parabéns, Ivete, festejou condignamente o 2º aniversário do seu blogue!
    Estas peças são, como diz, de rara beleza! São decorações de um tipo único no país e penso que evidenciam bem a marca de Coimbra nas formas e nas cores utilizadas. Este tipo de perfis encontra-se em muitos azulejos de figura avulsa de fabrico coimbrão, de final do XVII a início do XVIII, atribuídos a Agostinho de Paiva. Estará a matriz deste tipo de figuras na arte da Renascença, como sugerem o Luís e o Manel?
    E as palanganas a verde e manganés com filetagem a azul também não podem deixar de lembrar cores da azulejaria presente em Coimbra, não só a hispano-árabe (que qualquer artesão de Coimbra conheceria, pelo menos dos revestimentos da Sé Velha, ou de Santa Clara-a-Velha, já em fase de abandono...) mas também a própria azulejaria de fabrico coimbrão dos tempos da Reforma Pombalina e da Fábrica da Telha Vidrada, particularmente os azulejos marmoreados dos rodapés que utilizam exatamente estas duas cores, ao contrário do que se vê na produção de Lisboa...
    Enfim, considerações amadoras de quem se delicia a observar exemplares da nossa rica produção cerâmica e lhe agradece esta bela partilha.
    Beijos

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    1. Maria A.
      As peças têm, definitivamente, a marca de Coimbra.
      Fui procurar imagens de azulejos atribuídos a Agostinho de Paiva e encontrei um painel com exemplares de figura avulsa, em que se vêem alguns onde estão representados bustos de senhoras, algumas de perfil. Pertencem ao património azulejar do Mosteiro de Tarouca.
      Quanto à paleta cromática - verde , manganés e azul - usada pelos pintores das olarias de Coimbra, principalmente nas peças de Faiança Ratinha um pouco mais recuadas, pode muito bem existir alguma influência, principalmente nos filetes em azul, que rematam a decoração das peças, que são um pouco mais violáceos, devido ao uso de pigmentos mais espessos (?). É uma simples hipótese!

      Beijos

      if

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