segunda-feira, 12 de maio de 2014

A Avenida da Liberdade

      
Fui "fazer ... a Avenida"

Esta expressão teve origem num português acabado de chegar de Paris. Apareceu no Chiado, "trazendo no fato um pouco do aroma das acacias do Bois de Boulogne, nas maneiras um ar de blasé de clubman parisiense, na linguagem uns gallicismos terriveis que faziam desesperar o indigena, e um tanto aborrecido com esta boa terra que não sabia explorar o seu belo Tejo e o seu magnifico sol, bocejando em procura de qualquer cousa que lhe suavisasse as maguas pela terra que deixara, exclamava para o grupo de amigos que o rodeavam:
Rapazes, vamos fazer ... a Avenida. E descendo o Chiado, arrastando consigo uns mais corajosos que se arriscavam a sair da porta do Baltresqui ou do Magalhães, ele ia todas as tardes ... fazer a Avenida."1


Imagem retirada da internet

Era este um dos acontecimentos maiores da sociedade de Lisboa no raiar do século XX. Todos, damas e cavalheiros, se passeavam na Avenida, como era de bom tom nessa  época. Circulando calmamente por entre as frondosas árvores, comentavam os últimos gritos da moda vinda de Paris ou os discursos proferidos na Câmara dos Deputados.
O velho Passeio Público já não satisfazia as necessidades dos lisboetas, no que dizia respeito  às diversões. O projecto da Avenida veio substitui-lo. A sua concretização é entregue a Ressano Garcia que, tendo estudado em Paris, se vai inspirar nas concepções urbano-paisagísticas de  Georges-Eugène Haussmann. Foi este que levou  a cabo a renovação da capital francesa: parques, praças  e avenidas arborizadas rasgam-se e integram-se na malha urbana. A sua acessibilidade acompanha o rápido sucesso que os novos "quartiers" alcançaram.
As antigas concepções do passeio mundano, murado e reservado para as elites, são esquecidas.

"Um tarde de domingo na Avenida"
Ilustração Portuguesa, nº34, 27 de Junho de 1904


Também eu fui... fazer a Avenida. A Feira de Velharias da Avenida. Desta vez em pleno século XXI, mas com imagens e objectos  pertencentes ao passado.




Embora a feira se distribuísse unicamente pelo lado direito de quem desce - compare-se, à esquerda, com o lado oposto - era grande e tinha muitos expositores. De tudo, um pouco se podia apreciar. 


Um belo e bom conjunto de molduras, das quais sobressai uma,  Arte Nova, com os seus elegantes enrolamentos exibindo, ainda, a fotografia de um senhor.

Um rapaz ainda novo, coleccionador de brinquedos antigos, mostrava garbosos soldadinhos de chumbo, dispostos em posição de combate. Mais abaixo uma outra banca com brinquedos do meu tempo.






Num outro vendedor, algumas faianças portuguesas, das quais ressaltava esta, pela sua elegância e cor.
Um outro mundo, antigo, que vive de memórias, acarinhadas por alguns, felizmente.



O matraquear das máquinas faz coro com as notas da concertina e o ritmo do sapateado.



Para terminar, um presente para um feliz (desde a véspera já não angustiado) e orgulhoso adepto do Belenenses - o meu marido.




Moura Cabral, "Lisboa: Crónica Elegante", 1886



5 comentários:

  1. Cara Ivete

    Fazer a avenida, uma expressão que desapareceu quase de todo. Hoje faz-se quanto muito o Colombo, o Dolce Vita ou vai-se ao Continente, tomando caminho por uma via rápida.

    Eu como moro no centro de Lisboa, por vezes apanho ainda resquícios desse tempo em que se passeava pela Avenida. Recentemente, tive no meu prédio uma velha louca que passava dia e noite a gritar. Depois de dois anos de inferno, finalmente conseguiu-se chamar a polícia, a polícia de proximidade, os bombeiros, o delegado de Saúde, os assistentes sociais, os técnicos do Miguel Bombarda e reuniu-se uma pequena multidão de cerca de 20 pessoas para tirar a Senhora, que se tinha fechado às sete chaves em Casa. Tiveram que entrar pelas traseiras, partiram um vidro, imobilizaram a Senhora e depois arrombaram a porta para poderem sair. Ao fim de umas boas duas horas, a velha louca saiu do prédio aos gritos, pelos braços de dois polícias daqueles latagões. Um dos polícias que a segurava, um jovem musculoso, dizia para a acalmar "agora, a Senhora vai passear para a Avenida de braço dado com os seus dois namorados". Foi pior a emenda que o soneto e a velha louca, presa em cada braço por dois polícias saiu da rua aos gritos "eu não sou mulher de homem nenhum!!!, eu não sou mulher de homem nenhum!!!"

    Foi a última vez que ouvi a expressão passear na avenida e nunca mais me vou esquecer dessa cena, digna de um filme cómico português dos anos 30.

    Um abraço

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Luís
      Só dei este título ao post porque me lembrei de um texto que tinha lido na Biblioteca Nacional,aquando das minhas investigações sobre moda. São interessantes estas leituras, pois dão-nos uma perfeita imagem da sociedade de finais de oitocentos. O desfilar das equipagens, a um ritmo lento, para que pudessem ser apreciadas, mostrando a riqueza e importância dos seus proprietários.
      Concordo com o Luís quando diz que a cena pode ter sido tirada de um qualquer filme português da década de quarenta/cinquenta. Vem-me à memória um trecho de uma revista em que a cena do passeio pela Avenida era bem satirizado: as manas Laureanas iam para a Avenida porque era mais concorrida, de braço dado e de passo acertado.
      Um abraço
      if

      Eliminar
  2. Estes arranjos urbanísticos da segunda metade de oitocentos foram importantes na Europa, devido sobretudo à necessidade de crescimento das cidades, com a afluência das classes rurais à cidade, originada pelo desenvolvimento da industrialização, iniciado no século XVIII.
    Outras razões importantes para esta reorganização urbana prendiam-se igualmente com a sublevação das classes operárias e movimentos de especulação imobiliária, que grassaram nas áreas urbanas.
    Todas estas razões levaram a obras importantes que mudaram a face das cidades medievais, transformando-as naquilo que conhecemos hoje.
    E, não tendo conhecimento do que foram estas cidades no passado, acabamos por lhes achar um encanto muito especial, pois foram cidades criadas para atender uma população em crescimento exponencial.
    Assim, cidades como Viena, Paris, Londres, Barcelona, Lisboa, e muitas outras, experimentaram arranjos urbanísticos caraterísticos, por razões variadas.
    Nos finais do século XVII Londres tinha sido totalmente remodelada, dado o grande incêndio, e, mais tarde, pela afluência desmesurada de populações rurais em busca de emprego na indústria.
    Lisboa, devido ao terramoto, nos finais de setecentos, remodelou-se, e as obras prolongaram pelo século XIX, com o hiato devido à ocupação francesa e à guerra civil, sendo retomadas posteriormente, mas será na segunda metade de oitocentos que a cidade mais se transforma segundo planos mais adequados, da autoria de Ressano Garcia, como bem refere no texto.
    A especulação imobiliária e os movimentos de urbanísticos devem-se, em alguma parte, à extinção das ordens religiosas, pelo que os seus bens foram vendidos em hasta pública, sendo os terrenos dos centros urbanos, antes utilizados com finalidades agrícolas, loteados e construídos.
    Grandes avenidas, destruição de parte dos núcleos antigos, com raízes medievais, pontos principais de organização do espaço obtido por grandes praças a que iam ter vias espaçosas organizadas em quadrícula retilínea, segundo um modelo hipodâmico, se, por um lado, facilitavam e ordenavam o trânsito na grande urbe, permitiam também um mais fácil controlo dos movimentos operários, mediante uma célere afluência das forças da ordem aos locais.
    O barão Haussmann foi um dos protagonistas deste arranjo em Paris e com ele aprenderam muitos outros urbanistas, que levaram estes arranjos para os seus países.
    Em certa medida, face a uma catástrofe terrível, Lisboa foi precursora destes novos arranjos urbanísticos.
    Tenho alguma admiração pela ação dinâmica urbanística introduzida por Duarte Pacheco, no Estado Novo, um homem com visão, ainda que sujeito à política de estado.
    Nestes últimos 60 anos deu-se nova hecatombe urbanística em Lisboa, para dar lugar ao automóvel e a novas especulações imobiliárias, a que teremos, infelizmente, que nos habituar.
    Um dos meus professores de arquitetura, quando tinha chegado a Lisboa nos finais dos anos 50, ainda se lembrava de ver rebanhos a pastar em plena avenida da Liberdade!!!!!!
    Peço desculpa pela extensão do comentário, mas serviu-me para organizar ideias

    Manel

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Esqueci-me de acrescentar que achei muito curioso, porque a terrina que mostra, com uma falta de material na base, estive quase para a comprar há algum tempo, quando os seus vendedores estiveram em Estremoz. Mas já tinha gasto a quantia que trazia disponível, pelo que ... acabou na feira da Avenida!
      Aliás, gosto bastante destes vendedores, sempre atentos, sabedores do que vendem, muito cuidadosos na identificação das suas peças, como, aliás, deveria ser sempre.
      Manel

      Eliminar
  3. Lisboa, no século XIX, à semelhança das outras capitais europeias, modernizou-se. O crescimento da cidade à beira rio, quer para Ocidente, quer para Oriente, já estava bem definido. Era necessário abrir a cidade para Norte. O grande eixo da Avenida da Liberdade até às Avenidas Novas iniciou-se e, com o tempo, concretizou-se. Quanto aos rebanhos, nos inícios da década de sessenta, ainda me lembro de os ver nas imediações da Avenida da República...
    Também tenho um certo fascínio por Duarte Pacheco, como pessoa e como profissional. Viveu em aceleração constante e, do mesmo modo partiu.
    If

    ResponderEliminar