sábado, 26 de outubro de 2013

Um prato Brioso

Um original prato Brioso





Este prato tem uma história peculiar. Vi-o, pela primeira vez, no Louvre des Antiquaires,  num período da vida muito nefasto, em que, por razões de saúde, se tornava necessário ir todos os anos a Paris. 
O proprietário de uma das lojas ali situadas, ao ouvir-me falar português, lançando mão das mais elementares regras comerciais, apressou-se a declarar-nos que tinha um prato de "Coimbrá". E mostrou-nos este belo exemplar. Verdes nos nossos conhecimentos e assustados com o preço, cerca de trezentos contos, hesitámos. Foi o nosso erro. Pedimos, no entanto, que nos deixasse tirar uma fotografia. Quando, já em Lisboa, conversando com amigos sabedores e consultando livros da especialidade, ficámos cientes da veracidade das palavras do antiquário francês. Era mesmo de Coimbra, possivelmente da produção de Manuel da Costa Brioso.
Uma das características decorativas da sua produção é o horror vacui - a ocupação de toda a superfície da peça. Esta mesma tendência vai verificar-se, posteriormente, na decoração da faiança ratinha que temporalmente lhe sucedeu. Na produção Brioso não existe normalmente uma demarcação decorativa distinta entre a aba e o covo: regra geral, não existe cercadura envolvente, com ornamentação diferenciada, o que propicia maior criatividade ao artista. Nas palavras de Artur de Sandão, é uma faiança "de robustez descuidada e fácies arcaizante" onde os "pormenores denotam o ingénuo sentido de tão distinta expressão local"1, dando forma a uma tipologia de aspecto mais recuado.
Os pormenores deste prato fogem de todo ao padrão estabelecido, quer pela representação em si, quer pela extrema ingenuidade do traço, demonstrativa de mão insegura e talvez ainda muito juvenil. Poderá ter sido a sua "prova de artista", que ficou aquém da sua fértil imaginação.

A embarcação, qual imagem de um menino de escola - uma meia lua com duas velas triangulares - navega ao sabor da ondulação. Os sorridentes  passageiros, ignorantes do destino que os espera, observam e desfrutam da viagem.
Também presentes outras personagens, cujas obrigações são difíceis de conjecturar: timoneiro, manobradores de velas (?)...





Em fundo, monstros marinhos povoam as águas, numa clara alusão às histórias fantásticas que dominavam a imaginação dos marinheiros no início dos descobrimentos.

A produção de Manuel da Costa Brioso centra-se, fundamentalmente, no século XVIII, embora alguns autores admitam que provinha já dos finais do século anterior. Para além desta produção usual, menos elaborada, importa assinalar uma outra vertente, de qualidade muito mais refinada, como a travessa que integra o acervo do Museu Machado de Castro "coberta de decoração relevada a branco, sobre esmalte azulado, e no fundo uma caçada a cores. O reverso, marmoreado a castanho, mostra ao centro, a inscrição: Brioso, 1779" 2.

In "Cerâmica de Coimbra"
de Alexandre Pais, António Pacheco, João Coroado, pg.94


MNMC nº inv.4566


O depósito de parede do Museu Nacional de Arte Antiga, pela sua decoração rigorosa e paleta de cores, lembra o trabalho de azulejaria, tão importante na produção coimbrã.
De execução mais elaborada, no entender de Alexandre Pais, António Pacheco e João Coroado, estas peças podem ter sido uma "produção com intuito experimental"3, numa tentativa de fugir aos padrões mais comuns praticados nas oficinas de Coimbra. Pela sua raridade, podemos intuir que esta iniciativa não teve sucesso.


MNAA
 
MNAA

No entanto, muitas outras variedades de objectos foram produzidos por este fabricante e seus seguidores: tinteiros, relicários, pucarinhos...







1 Artur de Sandão "Faiança Portuguesa séculos XVIII-XIX", 1970.
2 Charles Lepierre " Estudo Chimico e Technologico sobre a Ceramica Portugueza Moderna", 1899.
3 Alexandre Pais, António Pacheco, João Coroado "Cerâmica de Coimbra", 2007
Miguel Cabral de Moncada "Faiança Portuguesa Séc. XVI a Séc. XVIII",2008


quinta-feira, 17 de outubro de 2013

Estátuas das Devesas

Estatuária da Fábrica das  Devesas

Desde sempre gostei de olhar as fachadas de prédios que ainda se vão encontrando pelas cidades e terras do nosso País, de ver as estátuas que ainda resistem como figuras cimeiras de muitos deles.






Há tempos, folheando um catálogo da Leiloeira Cabral de Moncada, deparei-me com algumas peças da fábrica das Devesas - bustos e elementos ornamentais de fachada.
Esta, bem como outras suas contemporâneas,  foram verdadeiras "escolas de artes" e de artistas cerâmicos, nelas se tendo formado escultores e modeladores.
As obras e peças que ali se produziram marcaram uma época, contribuindo para caracterizar um período específico na ornamentação das  fachadas da arquitectura portuguesa, de finais do século XIX.
As suas estátuas eram, geralmente, vidradas de branco. No entanto, também podiam surgir marmoreadas, bronzeadas ou simplesmente em fosco. Dentre as fábricas que se dedicaram ao fabrico de estátuas de ornamentação nenhuma produziu tanto, quer em quantidade e qualidade, quer em diversidade de materiais e de temas: divindades protectoras, comércio, indústria, artes, alegorias, estações do ano, continentes, figuras históricas e tantas outras representações.

Primavera

Inverno
Catálogo Fábrica Cerâmica e de Fundição das Devezas, 1910, pg.14

As estátuas acima representadas constituem a página 14 do Catálogo da Fábrica das Devesas, de 1910. Deste grupo existem ainda, actualmente - daí o destaque que se lhes concede - as representações físicas da Primavera e do Inverno, que correspondem aos números 30 e 33, da referida página.
A estatuária para exteriores das Devesas, pelo  maior naturalismo da sua figuração e pelas expressões menos arreigadas a cânones e modelos previamente estabelecidos, ganha competitividade, pela qualidade e perfeição,  relativamente às restantes fábricas, nomeadamente a de Santo António do Vale da Piedade.
O espírito empreendedor do seu proprietário, António Almeida da Costa, leva-o a sediar as suas empresas junto de boas vias de comunicação, que facilmente lhe permitam um eficaz escoamento dos seus produtos, bem como a sua exportação, principalmente para o Brasil. Tendo em vista alcançar uma maior visibilidade para o seu trabalho, procede à impressão de catálogos, exemplificativos de toda a sua produção. A presença em exposições industriais, nacionais e estrangeiras, permite uma divulgação e conhecimento das suas peças, como foi o caso da Exposição Universal de Paris, em 1900, na qual recebeu uma medalha de prata.

Busto de Camões, catálogo CML, Junho 2005

Busto de D. Pedro V, catálogo CML, Junho 2005

Catálogo Fábrica Cerâmica e de Fundição das Devezas, 1910, pg. 27






Na cidade brasileira de Pelotas, situada no estado do Rio Grande do Sul, foi feito um estudo sobre a ornamentação das fachadas dos edifícios, no período balizado entre 1870 e 1931. Por ele se verificou a presença de estátuas  da Fábrica das Devesas, o que vem corroborar o que anteriormente se disse - o apreço em que era tida a produção desta fábrica que exportava muitas peças para o Brasil.

António Correia Lourenço, brasileiro de "torna-viagem", enriqueceu no Brasil. Regressado a Portugal, vai aplicar o seu dinheiro na construção da Casa do Chão Verde, em Rio Tinto, perto do Porto, onde viveu os últimos anos da sua vida.

Imagem retirada da internet
Dentro do espírito do romantismo da época - finais do século XIX -, vai encomendar à Fábrica das Devesas diversas estátuas, algumas únicas, porque exclusivas, muitas delas da autoria de José Joaquim Teixeira Lopes e seu filho, parte delas assinadas. Da encomenda feita em Julho de 1871, sobressai, entre outras, a estátua que simbolizava Portugal, representada por um guerreiro e que, juntamente com a alusiva ao Brasil, encimava os pilares laterais do portão de entrada da quinta.


Estátua representativa de Portugal, atribuível a Teixeira Lopes, Pai
 ( Catálogo da Fábrica Cerâmica e de Fundição das Devesas, 1910, p.12, nº 5)


Portugal


Agradeço ao proprietário das imagens apresentadas a sua cedência e permissão para as divulgar.

Catálogo da Fábrica de Cerâmica e de Fundição das Devezas, 1910
A encomenda. O artista. A obra. IV Seminário Internacional Luso-Brasileiro. Bragança. 2009