sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

Natal 2014






(...)
Dizei-me, qual é mais poderosa, a graça ou a natureza? A graça ou a arte?
(...)
...vede o que faz em uma pedra a arte. Arranca o estatuário  uma pedra dessas montanhas, tosca, bruta, dura, informe, e, depois que desbastou o mais grosso, toma o cinzel na mão e começa a formar (...)".
Sermão do Espírito Santo, Padre António Vieira

E da pedra nasceu o Menino. E das mãos nodosas de um homem nasceu um singelo ramos de flores para o aquecer e adorar.
A todos um Feliz Natal.



Escultura de Jorge Pé-Curto

domingo, 14 de dezembro de 2014

Pratos de esmolas de Nuremberga (?)




Estes grandes pratos, de latão, batido e repuxado, são conhecidos genericamente por pratos de Nuremberga, dado que foi nesta cidade que se desenvolveu um dos seus principais centros de produção e exportação. Grandes, e vistosos, destinavam-se quer a fins profanos, quer a fins religiosos.
No campo laico, eram exibidos pela burguesia que, ciente da sua crescente importância económica e social -  mas não podendo rivalizar com a moda de exibir ricas baixelas em ouro, tão em voga nas cortes europeias -, recorre  a estes pratos, os quais, pelo tamanho, cor e brilho, substituem a preceito aqueles que querem imitar. Com fins religiosos, serviam, entre outros usos, para  a recolha de esmolas durante as cerimónias litúrgicas.

Conhecidos genericamente como dinanderies, "designação que se dá ao conjunto de objectos de cobre e latão fabricados na cidade de Dinant (Bélgica) e arredores, a partir do século XII"1, encontram um mercado apetecido e rendoso na opulenta Antuérpia do século XVI. As profundas ligações comerciais de Portugal com a Flandres levam, no século XVI, a estabelecer uma feitoria portuguesa nesta cidade,  Entre os numerosos produtos importados incluíam-se os pratos de oferendas. Muitos deles chegaram até hoje. Sabemos que uma grande encomenda, de cerca de seiscentos pratos de esmolas, foi feita pelo rei D. Manuel I, enquanto Grão-Mestre da Ordem de Cristo e foram por ele oferecidos às numerosas igrejas que tutelava. Muitos deles encontram-se patentes ao público em museus e outros em colecções particulares.
Em época anterior e mercê de lutas internas e nomeadamente das invasões Normandas do século X, instalara-se na Europa um clima de instabilidade e medo que determinou que muitos dos artesãos desta arte se tivessem deslocado para outros países, levando consigo o seu saber e criando novos centros de produção. É o caso de Nuremberga, na Alemanha, de Paris, em França, e de Milão, em Itália.


Os temas tratados eram ambivalentes: podiam ter um carácter religioso ou profano. No século XV, dentre os temas religiosos, destacam-se, por mais frequentes e preferidos, a Anunciação - um dos mais solenes da arte cristã - e Adão e Eva no Paraíso.




  A Virgem, de mãos postas, em oração, surge ajoelhada, no lado direito, olhando directamente para o observador. Veste uma simples túnica. Do lado esquerdo, o anjo Gabriel, também ajoelhado, saudando a Virgem, segura na mão o ceptro, símbolo do poder de Deus. Sobre ambos, encimando-os, a pomba, que personifica o Espírito Santo. Entre as duas figuras, separando os dois mundos, o sagrado e o profano,  um vaso de açucenas.




Outro tema recorrente é o de Adão e Eva no Paraíso. "Com o advento do Humanismo, este tema deveria assumir (...) um lugar de relevo"2.
Em posição central, a árvore do conhecimento, do bem e do mal, com a serpente nela enroscada. Ladeando-a, em posições simétricas, as figuras de Adão e Eva. Esta segura na mão esquerda  o fruto, que oferece ao homem. Este recebe-a com a mão esquerda.
A cena tem lugar no Jardim. À direita, uma porta. Simboliza a entrada no Paraíso.

Muitos dos temas centrais estavam frequentemente rodeados de motivos vegetalistas e de inscrições em letras góticas, que, com as sucessivas reproduções, foram perdendo o seu significado  original, passando a ter uma função meramente decorativa.

Motivos de carácter profano, principalmente  florais, compunham também a ornamentação.






Agradeço ao seu proprietário a permissão para fotografar as peças e para a sua publicação.


1 - Joana Martins "Pratos e Bacias de Latão dos séculos XV e XVI de Temática Religiosa da Casa Museu Guerra Junqueiro". Tese de Mestrado de História de Arte Portuguesa, Faculdade de Letras, Universidade do Porto, 2009/2010, pág.26,
2 -"Os Pratos de Nuremberga da Casa Museu Guerra Junqueiro". Câmara Municipal do Porto, MCMLXV, pág.20/21.




domingo, 30 de novembro de 2014

A moda e os Armazéns Grandella






A moda, como fenómeno da sociedade, é uma criação da cultura ocidental. Das profundas transformações económicas e sociais vividas em França, após a Revolução Francesa, resulta a ascensão de uma burguesia enriquecida, que vai marcar a sociedade francesa ao longo do século XIX. Luxuosa e exuberante, adora exibir-se. A moda permite esse teatro. Paris é o palco. Paris torna-se, assim, a capital incontestada da moda.
Cerca de 1850, com o desenvolvimento dos meios de transporte - caminhos-de-ferro e barcos a vapor-, a moda democratiza-se. Nascem os grandes armazéns. A imprensa especializada generaliza-se. A moda chega a todo o lado.
Os "Grandes Armazéns do Louvre" começam a publicar os primeiros catálogos que podem ser enviados a pedido e livres de encargos.






Portugal não quis apartar-se dessa modernização. Também aqui se publicam jornais e revistas especializados. Também aqui, replicando Paris, vão surgir grandes armazéns. Entre eles os Grandes Armazéns do Grandella.


Francisco de Almeida Grandella

Francisco de Almeida Grandella nasceu em Aveiras de Cima, no ano de 1852. Com onze anos veio para Lisboa, onde trabalhou como marçano em duas lojas de fazendas. Empreendedor e de espírito arrojado, vamos encontrá-lo, em 1891, já na Rua do Ouro, com os Grandes Armazéns Grandella, inspirados nos modelos parisienses. Contratou Georges Demay, arquitecto do Printemps que, respondendo às suas exigências, idealizou e realizou a planta do edifício. Dessa aliança de ideias surgiu uma construção de 11 pisos, 40 secções e um universo de 500 empregados.

Fachada principal dos Armazéns Grandella

A loja com entrada pela Rua do Carmo era dedicada às sedas, às fitas e às rendas. Talvez uma das secções mais importantes pois, pela sua localização privilegiada, permitia às senhoras descobrirem tudo aquilo de que necessitavam para ornamentar e enriquecer as suas toilettes. Ouçamos as palavras elogiosas de uma das agendas publicitárias do Grandella: "Entrando pela Rua do Carmo encontra-se a mais importante e mais rica secção do estabelecimento. É a secção das sedas. O seu sortimento proveniente das principais fábricas estrangeiras eleva-se a algumas centenas de contos de réis. Aqueles castelos de peças, cheias de vida, de finura, de graça, matizadas, vaporosas, estonteantes, dão a esta secção um tom de grandeza que deslumbra"1.
O êxito desta casa comercial cresce, mercê da dinâmica actuação do seu proprietário. A melhoria e desenvolvimento dos meios de transporte, principalmente o caminho de ferro, permite alcançar os mercados e regiões do interior. Graças a inteligentes campanhas de marketing, os catálogos publicitários chegavam a toda a metrópole, às ilhas e aos territórios ultramarinos. Os pedidos sucediam-se. Para responder a todas essas demandas, tornou-se necessário criar a Secção de Amostras onde, "de manhã á noite uma máquina poderosa de cortar fazendas em minúsculos bocados reduzia a simples amostras peças de lã, de sedas, de cheviotes, de todos os tecidos expostos à venda, enquanto outras máquinas as pregavam nas carteiras respectivas, com as indicações dos preços e das medidas"2.   


Secção de amostras in "História", nº112, 1998, pág.16




A divulgação dos catálogos obtém grande sucesso. Chegam a todo o lado, aumentando o número de pedidos e de encomendas, seja de vestidos já prontos, seja de fazendas para a sua confecção. O facto de conterem instruções sobre o modo de se tirarem medidas, ainda mais contribui para o seu êxito. Agora, já todas as senhoras podem vestir à moda da capital e também de Paris.





Apreciados, manuseados, ciosamente guardados, fizeram sonhar gerações de meninas, adolescentes, jovens e senhoras. Ainda hoje, como testemunho de uma época passada, se escondem como tesouros, fazendo com que o seu preço, quando se encontram à venda, em leilão ou nos alfarrabistas, suba desenfreadamente. Publicados com a entrada das novas estações, para além de nos fazerem sorrir, pela moda tão caprichosa e ditadora que divulgam, os elemento que contêm são excelentes para o estudo social e económico das épocas a que respeitam.



 



  



O Boletim da Moda, publicado em 15 de Dezembro de 1894, dá informações sobre expediente, portes e, nomeadamente, descreve, ao pormenor, os trajes que divulga. Nele também se pode ler que "a inauguração do novo atelier de modista foi o acontecimento mais notável do importante estabelecimento da Rua do Oiro (...) Este salão tem sido visitado extraordinariamente e as encomendas chovem ali, não havendo quase tempo para se aviarem.
Madame Pauline, já conhecida das nossas leitoras, que por muitos anos esteve na rua de Saint-Honoré, onde só se faziam toilettes para rainhas e imperatrizes, dirige os elegantes ateliers da casa Grandella, que, n'este ramo sofreu uma transformação au grand complet"3.

Mais uma vez se nota a excelência de Paris, e a necessidade de fazer notar a nacionalidade da modista "Madame Pauline", bem como a utilização de expressões em francês, no próprio texto da notícia. 
É inegável, Paris foi, é e será a capital da moda.
Para corroborar a importância da confecção e pronto a vestir dos Armazéns Grandella, apresentam-se dois trajes de passeio, ali confeccionados e que integram o acervo do Museu Nacional do Traje.
                                          






1 - Marina Tavares Dias "Lisboa Desaparecida, volume 2, pág.118.
2 -Joaquim Palminha Silva "Armazens Grandella", Revista História, Ano X, nº112, Setembro 1998, pág.12.
3- Boletim da Moda, nº1, 1894.





quinta-feira, 13 de novembro de 2014

Obviamente... Miragaia







As excelentes peças da Fábrica de Miragaia, publicadas pela Maria Andrade e pelo Luís Montalvão, muito têm contribuído para incentivar o meu interesse pelo estudo da sua produção. O motivo da série País, correspondente ao 2º período da sua laboração, que podemos situar entre 1822 a 1850, é o que mais me atrai. Os seus azuis, intensos e brilhantes, fascinam.  A pouco e pouco, devagar, interiorizam-se e ficam, marcantes, assenhoreando-se  de todo o nosso sentir.
A travessa que hoje mostro, com dimensões bastante grandes (39cm por 33cm), é uma peça que, por si só, irradia expressiva beleza: numa parede, coberta com faiança dos mais diversos tons de azul, proveniente de vários centros de fabrico, sobressaía pela riqueza das cores e pela decoração cheia. Apelava aos sentidos, como que pedindo que a observasse, a sentisse, a admirasse. Sentir-lhe o toque, macio e aveludado, perceber a sua textura, entender as técnicas decorativas, foi uma satisfação plena. A surpresa maior: a marca "Miragaia Porto". Desta vez não há interrogações, incertezas, nem dúvidas. Obviamente ... é produção da fábrica de Miragaia. 





Caracteriza-se como peça moldada, rectangular, pouco funda, com a aba decorada em esponjados, onde ressaltam as flores e folhagens. Ao centro, paisagem oriental, com um conjunto de edifícios, formado por vários corpos. Um deles coberto por uma cúpula. Um outro exibe um crescente. Toda esta composição está rodeada de árvores e vegetação.







Se bem que de dimensões um pouco maiores, esta travessa de Miragaia, marcada, é em tudo semelhante a uma outra que o respectivo Catálogo apresenta:  no formato, na composição decorativa e na paleta cromática.


In"Fábrica de Louça de Miragaia", MNSR, 2008, pág.245


Francisco da Rocha Soares (1806-1857)
in "Cerâmica Artística Portuense"

Francisco da Rocha Soares, homem de ideias avançadas para a sua época, sucedeu a seu pai na direcção e propriedade da fábrica. Antevendo a concorrência da louça inglesa, resolveu iniciar a produção em novas formas e decoração. Para concretizar a pretendida reconversão, chamou técnicos e artistas que lhe assegurassem a execução dos moldes. Concomitantemente, importou  peças inglesas para servirem de modelo. Iniciou a produção de faiança ao estilo britânico, sendo a série "País" uma das que mais aceitação teve em terras portuguesas.
Com incursões na politica, por várias vezes fugiu, chegando a estar preso. Arruinado, declara a falência.
Faleceu em 1857.




Fábrica de Louça de Miragaia, MNSR, Porto, 2008.
Vasco Valente " Cerâmica Artística Portuense dos séculos XVIII e XIX", Porto.
Luiz Augusto de Oliveira "Exposição Retrospectiva de Cerâmica Nacional em Viana do Castelo no ano de 1915", Porto, 1920.


quinta-feira, 6 de novembro de 2014

Igreja de S. Quintino ou um tesouro em azulejos








Imagem retirada da internet

A descoberta de um tesouro...
Numa ida à vila da Merceana, passei pela freguesia de S. Quintino, no concelho de Sobral de Monte Agraço.  Em posição sobranceira, dominando o casario, destaca-se uma pequena igreja dedicada a São Quintino. Só quando me aproximei é que me apercebi de toda a sua beleza. No branco caiado da sua frontaria, sobressai a cor da pedra. Datada de 1530, percebe-se a delicadeza do seu trabalho, qual renda tecida pelas mãos obreiras de uma qualquer rendeira.







O portal manuelino é ladeado por duas pilastras esculpidas com grutescos, figuras fantásticas e antropomórficas, flores e enrolamentos vegetalistas.
Quando entramos, uma inscrição latina, num  tecto pintado, convida-nos à oração.




O seu interior fascina pela cor e diversidade dos azulejos.
Logo à entrada, deslumbram-nos os raros painéis de azulejo ponta de diamante, que se repetem também no baptistério.



As naves e arcadas estão cobertas de azulejos barrocos: figurativos, albarradas e de  padrão.





Na campanha de obras, que data de 1738, para além dos novos revestimentos, foram reaproveitados e aplicados na parede do fundo de uma das capelas laterais alguns dos azulejos hispano-árabes já existentes.




No frontal de do  altar destaca-se uma cruz, ladeada por uma cercadura de azulejos de rendas,  os quais embora de produção posterior, se harmonizam  perfeitamente no conjunto.


O culto de S. Quintino terá sido introduzido na península aquando da vinda dos cavaleiros franceses, para ajudarem na reconquista cristã.
Filho de um senador romano converteu-se ao cristianismo e partiu para o norte da Gália, numa acção evangelizadora.Preso e alvo de terríveis torturas, porque se recusava a abandonar a sua fé, tornou-se mártir. O seu túmulo encontra-se na cidade francesa de Saint-Quentin, onde é venerado.




www.momumentos.pt/Site/APP_PagesUser/SIPA.aspx?id=2439


segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Davenport e Le Grand Tour







Este gracioso conjunto de peças inglesas marcadas Davenport, percorreu um longo caminho. De Inglaterra, passando por terras transmontanas, chegou  a Lisboa, onde terminou o seu Grand Tour. Recorda os tempos bons da minha infância.
Desde sempre me lembro de os ver, integrados no conjunto do serviço, aprumados e elegantes, na cristaleira que lhes estava destinada, na casa da Avó Isabel, na Rua de Santa Catarina, nº1363, no Porto.




À entrada da casa, a Avó Isabel, com cinco dos seus netos. A garota sisuda, do laçarote e vestido de xadrez, sou eu.
Ainda hoje existe a casa. Rés-do-chão e primeiro andar. Albergava esconderijos fantásticos, que o pequeno cão, o Fox,  revelava num ápice. Era o motivo das nossas queixas, pois não nos deixava gozar o prazer de estarmos escondidos tempo suficiente.  Ainda consigo descrever a distribuição das várias divisões. O átrio tinha uma porta de guardavento, com vidrinhos verdes, que dava acesso ao andar superior. À esquerda ficava a sala de jantar, comprida, algo solene, com as paredes apaineladas de madeira. Ao fundo, no lado direito, a cristaleira com o serviço Davenport, só  usado em dias de festa.

Para o meu Pai  ficou um prato coberto e dois pratos. 
De forma quadrangular,com tampa ovalada e bastante alta, o prato coberto revela uma decoração minuciosa, em tons degradés, de azul, que lhe conferem profundidade. O tema é um dos clássicos: as crianças, de feições caracteristicamente chinesas, brincando, inseridas na paisagem.  Os jogos vão variando. O casario e a paisagem, porém, mantêm-se. As cercaduras, floridas e rendilhadas, envolvem toda a decoração.  A pega da tampa, como que formando um arco, apresenta pequenos sinais: pontos e cruzes. 






Imagem retirada da internet
A marca é curiosa e lembra as primeiras peças marcadas pela fábrica. A palavra Davenport, em letras maiúsculas, foi usada a partir de 1805, acompanhada de uma âncora, incisa na pasta. O exemplar que herdei tem o número 77. Será um indicativo cronológico?







Os outros dois pratos, embora com tema afim, crianças a brincar,  apresentam entre si algumas semelhanças na decoração floral das cercaduras. Devem, contudo, ser posteriores ao prato coberto, já que a marca é totalmente diferente e, temporalmente, atribuída ao último quartel do século XIX
Não é, pois, de excluir a hipótese de serem peças provenientes de dois serviços, um deles mais antigo e possívelmente da casa do meu Bisavô, João José Vaz de Morais Madureira Lobo, que vivia em Mirandela.





Imagem retirada da internet

O Grand Tour terminou. A viagem foi longa e aliciante.

terça-feira, 7 de outubro de 2014

Imagem de roca ... testemunho de fé e de serenidade




O rosto desta pequena imagem de roca transmite a serenidade que lhe advém da extrema leveza e juventude do seu rosto. Com dimensões não muito usuais - cerca de quarenta centímetros, quando em geral o seu porte tinha medidas superiores - torna-se graciosa e apelativa para os nossos olhares. Imaginamos que possa ter estado em adoração num qualquer oratório de uma qualquer devota anónima, que amorosamente dela cuidava.

Algumas destas imagens, esquecida ou desconhecida a sua antiguidade e importância, estão expostas em altares de pequenas capelas e igrejas, vestidas por orgulhosas zeladoras, brilhando nos seus trajes de cetim e galões dourados. É o caso de duas peças que encontrei, uma na Igreja de Vila de Ala, aldeia do concelho de Mogadouro, e uma outra, em Miranda do Douro. Curiosa, levantei um pouco a orla das suas saias. Eram mesmo santas de roca.

Estas imagens tiveram o seu apogeu nos séculos XVIII e XIX, quando as suas congéneres em gesso, produzidas em série, entraram na preferência das pessoas graças aos novos gostos sociais e ao processo de industrialização, que as fabricava por um valor mais económico.
A sua estrutura compositiva, articulação dos membros e diversidade de trajes e atributos, vocacionava-as para atrair a atenção dos devotos e desempenhar um papel de destaque nos rituais processionais, tão do gosto das populações. A expressão sofredora, nos casos das cenas da Paixão de Cristo, potenciava grandiosos efeitos visuais, levando, segundo a estética e a teatralidade barrocas, a que os espectadores se sentissem integrados na realidade da representação.
Devido à acção evangelizadora da Companhia de Jesus, muitas destas esculturas perduraram no tempo e são veneradas em muitas regiões, nomeadamente no Brasil, onde algumas ainda saem em procissões.





As santas de roca, também conhecidas por imagens de vestir, eram constituídas por dois elementos definidores: O corpo, esculpido realçando a cabeça e as mãos, bem trabalhadas e com carnação, era, de um modo geral, de madeira mais nobre. A armação, oculta pelo vestuário, resumia-se a uma estrutura de ripas, que servia, não só para sustentar a parte visível, como também tinha o propósito de tornar mais leve a imagem, contribuindo, assim, para aligeirar o peso de toda a encenação quando transportada no andor.
O enriquecimento das peças decorria, também, dos atributos que lhes eram apostos, muitas vezes rivalizando as confrarias para exibir os trajes mais ricos e as jóias mais vistosas.
Neste caso, a imagem exibe um pequeno fio de prata de onde pende uma pequena e singela jóia, em forma de flor.




A saia, de um rico veludo azul, com ramagens douradas, cai em pregas profundas que vão abrindo. Espraia-se em  seu redor, formando uma pequena cauda.

Numa tentativa de aproximar as Santas de Roca da realidade, eram-lhes apostas cabeleiras naturais e dado um tratamento especial aos pormenores.
Possuidoras de variados trajes, qual deles mais rico e sumptuoso, tinham a sua colecção particular de jóias de ouro, prata e pedrarias. Este enxoval ia sendo constituído por numerosas dádivas, resultantes de promessas ou também legadas em testamento.  
O cuidado posto no tratamento das faces e das mãos, bem como o esplendor e opulência das roupas que vestiam, tinham como objectivo enriquecer a cenografia, servindo para despertar um maior fervor e estabelecer uma comunicação estreita e directa com os acompanhantes.
A articulação dos braços e mãos permitia o seu posicionamento conforme a época e o evento religioso que ia decorrer. 






domingo, 21 de setembro de 2014

S. Vicente Ferrer, uma imagem alada


S. Vicente Ferrer




Pequena e graciosa imagem alada de S. Vicente Ferrer. 
Na iconografia cristã são assim figurados os santos dominicanos S. Tomás de Aquino e S. Vicente Ferrer. Este último, conhecido pela sua acção pregadora, cujos sermões eloquentes e comovedores levaram à conversão de muitos judeus e árabes, considerava-se o Anunciador do Juízo Final. 



Com uma altura de cerca de 26 cm, a imagem exibe um santo ainda com feições juvenis, que não espelham a  vida de sacrifícios extremos a que se submetia. Vestido com o hábito dos dominicanos, túnica e escapulário brancos, manto e pequena capa negros, com pintura e decoração de fino traço, tão ao gosto do século XVIII. 
Os atributos que lhe são apostos, para além das asas, raramente representadas, são, como no caso presente, o indicador direito apontando para o céu, numa clara alusão ao Juiz Supremo e o livro aberto, que segura na mão esquerda, e personifica a eficiência persuasiva e esclarecedora das suas palavras.



A figura jacente a seus pés é uma alusão ao Milagre de Salamanca. Olhando para o Santo, de modo implorativo, a miraculada agradece a graça recebida - a vida. Frei Manuel de Lima, no Agiológico Dominicano, conta-nos, a história desse milagre: "Teve notícia de que em Salamanca alguns ouvintes murmuravam dos seus sermões; ao outro dia sobe ao púlpito e ponderando que São João no seu Apocalipse vira um anjo, que pregava as vizinhanças do dia do Juízo, continua dizendo: Eu sou este Anjo do Apocalipse, eu sou o mesmo anjo que em figura se representou a São João.Alvoroçou-se o auditório, os censuradores desembuçaram o seu desagrado  e S. Vicente depois de uma breve pausa, torna a dizer: Sossegai, sossegai os escândalos. Acaba de expirar uma mulher à porta de São Paulo, venha aqui esse cadáver e ouçamos o seu testemunho. Veio o cadáver e descobriu.se perante o púlpito e perguntou-lhe o Santo: Mulher sou eu o Anjo do Apocalipse que publica a hora do Juízo universal? Sim, diz a mulher, tu és esse Anjo, tu o que foi representado naquela visão. Torna a perguntar-lhe São Vicente: Queres ficar com vida, ou queres ir para a sepultura? Quero viver, respondeu a mulher. Pois vive, disse o Santo e viveu largos anos, perene testemunha de tão multiplicados prodígios".1




S. Vicente Ferrer  nasceu em  Valência, no ano de 1350. Com dezassete anos deu entrada na Ordem dos Dominicanos. A sua acção pregadora, focada especialmente na necessidade da conversão, espalhou-se pela Europa principalmente pelos países circundantes, como França e Itália. Faleceu em Vannes, França, no ano de 1419. Foi canonizado em Roma pelo Papa Calisto III, em 1455.



Imagem retirada da internet


1- Frei Manuel de Lima "Agiológo Dominio", Tomo II, Lisboa, 1710, pág.32.
Juan Ferdinand Roig, "Iconigrafia de los Santos", Ediciones Omega, 1950.
Jorge Campos Tavares, "Dicionário de Santos", Lello e Irmãos Editores.
António José de Almeida "Iconografia insólita, em Aveiro: Santos alados".