terça-feira, 19 de abril de 2016

A menina dança?



Mais um aniversário. É lógico que se comemore a data com um evento que perdure para a memória dos tempos. Já três anos se passaram desde que iniciei esta aventura cibernética. Nem sempre a inspiração vem, nem sempre a disposição está presente, mas o prazer de partilhar ideias e temas é gratificante. Assim,  continuaremos ...
Vamos celebrar com um baile. Não um baile de debutantes, mas um bailarico popular, em que a Menina - aquela que os nossos olhos admiram no prato de Faiança Ratinha - possa mostrar a frescura da sua tez trigueira e a  agilidade dos seus passos de dança.
Já no seu traje de festa, aprecia  o ramo de flores que o seu conversado lhe ofertou. Mais logo, nas voltas rápidas do vira, de novo lhe agradecerá as suas atenções. 
Num tom monocromático de manganés, é uma figura algo ingénua, mas um tanto audaciosa, pois o espartilho que a molda, faz destacar a sua cintura de vespa e o seu busto elegante. Traja uma saia rodada,  assente numa crinolina (?) que espalha o tecido em seu redor. Podemos imaginar um tafetá axadrezado, ornamentado com pequenos círculos e cruzes nas intercepções das linhas. O corpete de mangas compridas, bem justo e cintado, mostra um decote rendado.
O rosto, de perfil, apresenta um ar jovem e algo atrevido. Na cabeça, um chapéu de copa alta, confere-lhe um ar prazenteiro.
É uma figura marcante, que ocupa toda a superfície, destacando-se no envolvimento das ramagens.
Esta peça apresenta uma pasta grosseira, usada na produção das "faianças mais ordinárias, a que se dá o nome de ratinhas"1.A louça assim classificada, ordinária e de pasta mais grosseira, destinava-se a uma camada social mais desfavorecida economicamente, mas que não deixava de apreciar - e reconhecemos-lhe esse direito - uma decoração alegre e agradável aos olhos.


A senhora que se reproduz vem publicada na "Arte Portuguesa", sob direcção de  João Barreira, pág.198 e poderá ter servido de inspiração para a imagem da peça de faiança ratinha com que se inicia este post. O mesmo estilo de traje, de chapéu, de decote rendado. Diferencia-se por segurar nas mãos ramos de flores. Está datada dos finais do século XVIII (?). O artesão que a delineou, revela  um traço mais definido e seguro que se não observa no seu seguidor. Podemos colocar a hipótese de ter havido acesso a gravuras de álbuns que circulassem nas oficinas, pois  o traje e acessórios que as senhoras envergam não se coadunam temporalmente com os modelos de finais do século XIX. Essa discrepância é mais notória em relação aos chapéus. Atente-se na imagem seguinte:


François Boucher "Histoire du costume en Occident de l'Antiquité a nos jours"
Paris, Flammarion, 1965, págs: 256 e 280
   


Se procedermos a uma análise dos pormenores, nomeadamente dos chapéus, estes remetem-nos para uma época anterior (meados do século XVII). Usavam-se chapéus de copa alta, para ambos os sexos, embora os femininos, por garridice, fossem mais ornamentados. É possível, pois, que o pintor/ artesão, não tendo uma imagem contemporânea da época da produção da peça, tenha recorrido a uma anterior. O efeito decorativo primou pela originalidade e não desmereceu o pretendido. Pelo contrário, conferiu-lhe um toque exótico e assaz original.


Imaginemos, agora, um baile mais formal, num qualquer palácio da cidade do Mondego. A iluminação brilha e  reflecte-se nos espelhos laterais, conferindo ao salão uma miríade de cores, tão belos e ricos são os trajes das damas que valsam. Aqui as regras de etiqueta são mais rigorosas. Exigem trajes elegantes, adequados à solenidade do evento.
Algumas questões se impõem. Será que, aos humildes artistas ratinhos, foi dado observar os elegantes que assistiram ao baile? Se assim não foi, como conseguiram reproduzir tão fielmente os trajes? As respostas ficaram perdidas no tempo, mas a realidade, tão fidedignamente desenhada, essa chegou até nós, permitindo-nos ajuizar da mestria dos artesãos, que com tanta certeza as elaboraram. É a riqueza, embelezada pela pobreza. Pobres nos materiais, ricos na policromia e na composição criativa. 








A senhora, galante no seu traje, de saia presa por faixa dupla, com passamanaria franjada,deixando entrever o tornozelo, fino e elegante. O corpete, decotado, com galão em tons de azul. Da mesma cor, a sobressaia, apanhada na parte de trás, permitindo-lhe liberdade para os movimentos mais ágeis da dança. Na cabeça um chapéu, com duas fitas que caem pelas costas. De novo se destaca a irreverência ratinha - o ramo florido que rodeia a figura central - chamando a atenção para o colorido e a graça da cercadura envolvente.




O gentleman, qual Carlos da Maia, acompanha a senhora até ao salão de baile onde, diligentemente a vê apontar no seu carnet, os nomes dos cavalheiros que com ela vão dançar. As regras são precisas. A etiqueta assim o exige. 
O tempo passa. As luzes diminuem de intensidade. As velas  apagam-se. O baile terminou.


1- Charles Lepierre "Estudo Chimico e Techonologico sobre a Ceramica Portugueza Moderna". Lisboa, Imprensa Nacional, 1899, pág.119.
François Boucher "Histoire du Costume en Occident de l'Antiquité a nos jours". Paris, Flammarion, 1965.