quarta-feira, 19 de agosto de 2015

Uma arca transmontana



O mobiliário rústico português tem um encanto muito particular e, especialmente para mim, o que é de origem transmontana . Esta arca viveu numa qualquer casa, de uma qualquer aldeia, do concelho de Macedo de Cavaleiros.
Impõe-se pela sua elegância e dimensões. Assenta numa base que lhe dá a elevação necessária para manter a sua dignidade. Frontalmente tem um saial recortado, com a particularidade de ser amovível. As pranchas que a constituem, em madeira de castanho, são tábuas inteiras, maciças, indicativas da robustez e da fortaleza, quer das terras, quer das árvores, quer das pessoas que habitaram zonas tão inóspitas e longínquas. É uma peça feita para durar, que domina os locais onde se encontra. Qual terá sido a sua utilidade? Guardar o pão cozido quinzenalmente num  forno comunitário, alimento de famílias numerosas? Guardar o bragal das moças casadoiras que, pacientemente, à luz bruxuleante das candeias, o  iam tecendo e bordando? Guardar os fatos de ver a Deus, que iriam servir de mortalha? 
Abrindo -se, revela um conteúdo diferente ... um conjunto de alguns pratos de faiança de Estremoz.



                                


Esta faiança foi produzida na cidade de Estremoz, situada no distrito de Évora. O seu período de laboração baliza-se entre finais do século XVIII e princípios do século XIX. As Invasões Francesas, à semelhança do que sucedeu em muitas outras fábricas do país, vieram causar distúrbios na sua produção. Foi precisamente o que aconteceu em Estremoz. 
Senhora de uma pasta leve e fina, bem como de uma decoração elaborada e polícroma, as peças estremocenses adquiriram grande apreço entre os coleccionadores. Inicialmente, alguns pratos apresentam-se com a faixa de Rouen. No entanto, a predominância em relação àquela  afirma-se através de uma decoração mais apelativa e agradável aos sentidos. É o caso das flores, paisagens e motivos diversos.






Verifica-se uma harmonia, que encanta os olhos e enternece a alma.




O primeiro prato representa um esboço de paisagem, a que faltam as ruínas, tão do gosto oitocentista. Este tipo de esquema está concebido para que o motivo paisagístico seja o pano de fundo, mostrando, em primeiro plano, árvores ou vegetação mais rasteira. Na aba, pequenos e leves ramos num dos tons próprios desta faiança: o verde azeitona. A sua forma mostra algumas anomalias, resultantes, talvez, de um deficiente acondicionamento nas casetas e no forno. Não deixa, no entanto, de revelar a sua beleza. O segundo avulta pela simplicidade dos seus tons de azul e não desmerece no meio do conjunto.




Nesta peça observa-se uma roseta inscrita num hexágono em forma de grinalda. Um covo rico, pleno de cor, contrasta com a aba, onde uma singela cercadura de folhas vive da sua leveza.
Um dos motivos mais comuns: flores. Aqui, o artista, revelou a sua mestria, dando-nos uma imagem central onde impera a simplicidade, mas onde o traço demonstra certeza e precisão.
As flores mais usuais são as rosas, as túlipas e as anémonas. Podem ser representadas isoladas ou em conjuntos de três.


Mas a arca, qual ilusionista, ainda escondia outro segredo. Qual?
Um humilde conjunto de ratinhos que, envergonhados perante a altivez do grupo de Estremoz, não queriam ser mostrados. Mas não houve hesitações. A arca, pedia veementemente, quase exigia,  a exibição deste conjunto de pratos Ratinhos, em união perfeita com a singeleza das suas decorações.






Sven Stapf "Faiança Portuguesa Faiança de Estremoz",1997