terça-feira, 3 de junho de 2014

Ex votos,promessas, milagres




Testemunhos de graças recebidas, os ex-votos, quadrinhos ou milagres, são pequenos quadros que expressam de forma inequívoca a devoção e arte populares. Executados sobre madeira, tela ou cobre, eram "histórias contadas, em vivo colorido, da vida dos homens, episódios de desgraça e dor que terminavam num final feliz"1, oferecidos às capelas ou igrejas do santo invocado e por intercessão do qual se concretizara o pedido. Portadores de pequenas legendas, muitas vezes imprecisas ou com erros de ortografia, numa linguagem não erudita, não deixam, no entanto, de ser uma manifestação de fé, ingénua, mas convicta, e um agradecimento sentido pela mercê concedida. Este tipo de ex-votos datam, de um modo geral, dos séculos XVIII e XIX.
Modernamente, encontram-se, com igual propósito, muitas fotografias, intercaladas com representações mais antigas, simbolizando os agradecimentos pelas promessas feitas e entretanto concedidas. Muitas remontam à época da Guerra do Ultramar, décadas de sessenta e setenta do século passado, mostrando, principalmente, soldados na sua farda de militares.
Sob diversas invocações, os ex- votos relatam situações e vivências difíceis,só ultrapassadas e vencidas por verdadeiro milagre.




Neste, invoca-se a protecção de Nossa Senhora do Bom Sucesso para uma parturiente que "estando cinco dias prigozamente de parto sem poder vir com a criança a lus" a Ela recorreu e foram salvos, mãe e filho.
Estas pinturas, muitas vezes ingénuas, pelo carácter naif da sua execução, dão preciosas informações, sobre o seu contexto histórico e social. 
De um modo geral, em todos eles se pode observar uma clara definição de dois espaços de representação: o sagrado e o terreno. No presente ex-voto, à direita, envolta numa nuvem, encontra-se Nossa Senhora com o Menino nos braços.
No espaço restante, dispõem-se as demais figuras intervenientes: o pai, ajoelhado e de mãos postas, frente à imagem. O "Sorgião" indicando a figura de recém-nascido, a mãe, desfalecida, nos braços de outra senhora. Pelos trajes, requintados, das figuras, de finais do século XVIII, que se adequam à data indicada - 1769 - e pelo mobiliário - uma cama de bilros, "ornada de muitos pequenos elementos de torneado verticais, intercalados de travessões e remates entalhados"2 - podemos concluir  tratar-se de uma família abastada. 



Este ex-voto encanta pelo delicado e singelo tema: um milagre de S. Francisco que curou um menino que estava doente com "maleitas". A mesma organização cénica: à direita, a figura de S. Francisco, envolvido por uma nuvem, significando a força espiritual. À esquerda, a figuração do votante: o menino, de mãos postas,  ajoelhado, agradece a mercê da sua saúde pois  "foi o Santo servido de tirar-lhas".


Muitas vezes os temas estavam ligados à vida quotidiana das populações. Indicavam as suas profissões e as condições em que tinha acontecido o desastre. É o caso deste ex-voto.


Aqui invoca-se N. Srª. dos Remédios. O espaço cénico alterou-se. A imagem da Senhora encontra-se num altar, à esquerda. A família, aos pés de cama, reza pelas melhoras do seu doente. O acidente, causado por uma bomba de dinamite que rebentou quando estava a "abranger" fogo a um fogueteiro, ocorreu em "Simfens", no dia 4 de Agosto de 1888. O médico aponta para a cabeça do doente, enquanto o padre administra a Extrema Unção. Pelo mobiliário retratado podemos intuir que existia algum desafogo financeiro.




Um  exorcismo. Sob a invocação de N. Srª. das Dores, envolta nas nuvens que estabelecem a fronteira entre o profano e o divino, é concedida a saúde a Maria do Rosário, que estava "vexada do enemigo". Esta, de joelhos, agradece. O mafarrico, encurralado pela acção conjunta de N. Srª. e do padre, foge...





Para o grande final, uma parede plena de graça e exotismo. Uma belíssima colecção de ex-votos. Agradeço a gentileza e a disponibilidade manifestadas, que permitiram a sua partilha.

1- Alberto Correia "Do Gesto à Memória Ex-Votos", IPM, 1998, pág.7.
2- Robert Smith "Pinturas de ex-votos existentes em Matosinhos e outros santuários portugueses", Matosinhos, 1966, pág.6.

4 comentários:

  1. Este seu post apresenta obras fantásticas, e que nunca consegui encontrar à venda, a não ser uma única vez, há vários anos atrás, na Feira da Ladra.
    O que nessa altura vi à venda eram possivelmente ex-votos, de má manufatura, sucedâneos recentes, que preferi deixar onde estavam.
    Estes que aqui apresenta são verdadeiras manifestações populares, não da franja mais baixa da população, mas de gente que deveria ter sido dona de algo, pois, para mandar fazer estas pequenas obras piedosas, seria necessário terem algumas posses, como aliás bem refere no texto.
    Claro que o português, ainda que adequado a uma grafia da época, mesmo assim, seria mal escrito, mas isso, aos nossos olhos, aumenta o seu encanto.
    Também me lembro de, há ainda mais anos atrás, era eu um jovem, e pela primeira vez, vi expostos alguns exemplares numa capela situada no alto das serranias do maciço de Sicó, denominada de Sra. da Estrela, próximo de Redinha.
    Esta ermida, já citada por Moisés do Espírito-Santo na sua obra sobre santuários marianos, creio ter sido anterior ao século XVI (apesar dos elementos arquitetónicos primitivos serem manuelinos, apresenta no entanto vestígios de um culto ainda mais antigo), restaurado depois, no século XVII.
    Este santuário é curioso, pois foi construído num dos pontos mais altos de uma das serranias do dito maciço, em torno de uma lapa, que, com a entrada, apresenta alguma analogia ao útero materno, a qual é dotada de uma pequena superfície aquífera, a qual, segundo a tradição, não seca (esta cavidade na rocha eu cheguei a vê-la com água, mas não estou certo que não seque).
    Mas, como estava a referir (é fácil perder-me nos meandros da minha memória), nesta ermida vi alguns destes ex-votos, a par de uma grande quantidade de outros objetos provenientes de penitentes que faziam, e, ao que sei, o continuam a fazer, peregrinação na Primavera, mas que, após as obras de reconstrução que se fizeram há alguns anos a esta parte, os ditos ex-votos desapareceram - e a reedificação ficou um susto! Talvez os tivessem arrumado ...
    Se algum dia me calhar sob os olhos algum ex-voto, e se tiver com que o adquirir, não me escapará, pois sinto alguma ligação afetiva a um meio tão singelo de expressão de uma religiosidade intima.
    Ainda bem que trouxe este tema, pois não é muito comum.
    Manel

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    1. Manel

      Embora com um atraso grande não quero deixar de responder ao seu bem estruturado comentário. Estes ex votos são manifestações representativas da religiosidade das populações. Numa época em que doenças e flagelos eram tão difíceis de aplacar e, por vezes de entender, unicamente restava às pessoas recorrer à intervenção divina. Quando a graça era concedida, a forma de agradecimento expressava-se através de ingénuas pinturas, que até hoje nos encantam.
      Actualmente, as pessoas também mostram o seu reconhecimento colocando pequenas placas em mármore nas paredes das igrejas. É o caso, por exemplo, da Igreja de S.Mamede, em Lisboa.

      Ivete

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  2. Cara IF

    Parabéns pelo post. Realmente partilhamos muitos gostos. Também tenho desde há muito uma paixão por ex-votos. Encantam-me pela sua ingenuidade, mas também pelo pormenor com que retratam o mobiliário (normalmente o dos quartos de dormir) e a indumentária da época. São retratos falantes das mentalidade do tempo em que foram executados

    Pessoalmente, também adoraria ter um, mas não aparecem nas feiras de velharias.

    Uma vez desenhei um retirando imagens de várias gravuras e fiz um pastiche, que julgo ter alguma graça.

    Um abraço gostei muito do tema escolhido

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    1. Luís
      Concordo consigo quanto ao encanto e ingenuidade dos ex votos. São uma óptima fonte de estudo para a vivência do quotidiano: do mobiliário, aos objectos, ao traje, permitem tirar conclusões e ilustrar o modo de vida das épocas a que se referem.
      Um dia destes apresento mais alguns.
      Um abraço
      if

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