segunda-feira, 30 de junho de 2014

Faiança do século XVII: alguns tipos decorativos



Faiança do século XVII

Por faiança entendem-se "todos os corpos cerâmicos, independentemente da forma, revestidos a esmalte estanífero"1.
Publicações recentes, baseadas em "peças exumadas em contextos arqueológicos"2, permitem colocar, embora com alguma (in)certeza, a produção de faiança estanífera em Portugal, já a partir de finais do século XVI.
Ultimamente, as escavações arqueológicas e a arqueologia subaquática, muitas delas realizadas em diferentes zonas do mundo - tendo em conta os locais onde os Portugueses chegaram ou navegaram - deram, em termos de datação cronológica, um contributo precioso para esclarecer as muitas dúvidas que perduram e que, não obstante, continuam de difícil esclarecimento.
Reinaldo dos Santos apontou quatro grandes períodos para a faiança do século XVII, fazendo-os corresponder aos quatro quartéis do século.  O segundo período, que apelidou de "áureo", era, em sua opinião, aquele que melhor expressava a produção deste século, porquanto foi, nessa época, o segundo quartel do mesmo, que passaram a inserir-se elementos decorativos portugueses numa ornamentação maioritariamente oriental. Em seu entender, teriam sido, então, também introduzidos na paleta cromática o manganés e o amarelo,  surgindo temas decorativos nacionais relacionados com a Restauração, tais como soldados e brasões reais.
Inicialmente, a organização ornamental da faiança seiscentista denota profundas influências orientais, reproduzindo, com bastante fidelidade, a decoração da porcelana do período Wan-li, dado que a procura por parte das elites é muito forte, havendo, para esta produção cerâmica nacional, mercado certo, nomeadamente na Alemanha, onde se encontra grande número de exemplares.
No entanto, vão aparecer novos elementos decorativos nascidos da própria imaginação dos artistas pintores, que  introduzem elementos externos à gramática oriental. Daí  a inserção de temas de origem portuguesa, mantendo, no entanto,  uma clara predominância decorativa oriental - soldados armados,escudos e figuras tipicamente ocidentais-, tendo em conta a recente independência face a Espanha.
Uma tão profícua diversidade de elementos ornamentais, permite a agregação em famílias decorativas: desenho miúdo, aranhões, faixa barroca, rendas, contas, conventual.


Todas as peças que de seguida se apresentam são de dimensões reduzidas, variando entre os dezoito e vinte e dois centímetros. Contrastando com as de maiores dimensões - as peças de aparato, destinadas unicamente a ser vistas - revelam sinais de uso, permitindo concluir que eram efectivamente utilizadas pelos seus possuidores.


Prato oitavado, com Decoração de Desenho Miúdo, a azul cobalto, com contornos a vinoso de manganés. Uma cartela central, com a palavra ESCUTA, entre flores. Uma miscelânea de elementos vegetalistas e zoomórficos percorre a aba.
Esta família decorativa caracteriza-se por combinar elementos decorativos orientais e ocidentais, numa pulverização que se espraia por toda a superfície da peça.





Pequeno prato com Decoração de Aranhões, a azul cobalto e vinoso de manganés. O nome desta família decorativa provém dos elementos decorativos das abas, os quais mais não eram que as interpretações feitas pelos artesãos da ornamentação oriental usada na porcelana chinesa.





Duas peças com Decoração de Faixa Barroca. A designação desta família decorativa atribui-se aos "objectos produzidos na segunda metade do século XVII, contendo uma faixa ou tarja decorada com folhas de acanto estilizadas"3. Para além dos pratos, foi  também usada noutro tipo de peças, como canudos de farmácia e bacias de barba. Contêm as mesmas cores: azul de cobalto e vinoso de manganés: no primeiro, a letra F surge enquadrada entre vegetação; no segundo, uma paisagem com árvores e rochedos. Ambos apresentam, nas abas, cercaduras formadas por enrolamentos de folhas de acanto.







Pequeno exemplar com Decoração de Rendas. A flor central, unicamente em azul cobalto, mostra uma ornamentação densa e rica, de arcos e volutas, decoradas com rendas. Numa clara demonstração do horror vacui, o artista preencheu toda a superfície da peça.
O nome desta família decorativa tem, como provável origem, as rendas usadas no "vestuário português de quinhentos e seiscentos"4. 






Decoração de Contas. Ao centro sobressai um coração asseteado, circunscrito por círculos concêntricos, entre grupos de três contas, inseridas num triângulo. A aba mostra o mesmo esquema decorativo. Os mesmos tons: azul cobalto e vinoso de manganés.
A temática desta família decorativa, datável essencialmente da segunda metade do século XVII, continuou a ser usada ao longo mesmo século. Mais não é que a interpretação feita pelos nossos oleiros de um tema da porcelana chinesa, a cabeça de um ruyi, exprimindo poder e boa sorte. 






Uma faiança com uma ornamentação extremamente simples, conhecida por Conventual, uma vez que muitas destas peças procediam de encomendas feitas principalmente por conventos e personalidades ligadas a casas religiosas. 
Apresentam uma decoração muito simples, na qual a ausência de ornatos é manifestamente demonstrativa de uma inspiração mais arcaica. O fundo é esmaltado de branco, nele sobressaindo o azul cobalto e, mais tarde, também o vinoso de manganés. Este tipo de faiança perdurou até meados do século XVIII. 
Prato com as armas da Ordem de São Domingos ao centro, despojado de qualquer outra decoração.




Uma outra peça que, pelo singelo da ornamentação, também cabe nesta categoria. É um prato, talvez de produção exclusiva para a sua encomendante, "D. Thereza Maria". A inscrição do nome surge rodeada por uma grinalda de flores.






A faiança do século XVII constitui matéria de atracção irresistível, não só por representar historicamente o início da produção de faiança em Portugal como pela riqueza e diversidade das decorações oferecidas.
Agradeço ao seu proprietário a  partilha das peças apresentadas.




1- Casimiro, Tânia de Oliveira e Alves " Faiança Portuguesa nas Ilhas Britânicas (dos finais do século XVI até inícios do século XVII)", dissertação de doutoramento apresentada à FCSU, UNL, 2010, texto policopiado.
2 -Tânia Manuel Casimiro "Faiança Portuguesa: datação e evolução crono-estilística", Revista Portuguesa de Arqueologia, volume 16, pág. 352.
3/4- Miguel Cabral de Moncada "Faiança portuguesa Séc. XV a XVIII",  Scribe, 2008, págs.98 e 111.
Rafael Salinas Calado "Faiança Portuguesa", Correios de Portugal, 1992.






8 comentários:

  1. Ivete

    Que luxo! Este conjunto de peças parecem saídos da colecção de um bom museu português e apreciei muito o texto que redigiu de forma clara e séria, tentando sistematizar os conhecimentos dos vários autores.

    Claro, não são peças ao alcance de qualquer coleccionador, mas permitem-nos compreender o que foi a faiança portuguesa no XVII, o que é importante para entender a faiança dos séculos posteriores. Também acho muita graça encontrar nestes pratos os mesmos motivos que encontramos nos azulejos da mesma época, como as rendas e os enrolados das folhas de acanto.

    Sim, senhor, foi uma boa lição sobre faiança e é importante que na internet se possam encontrar textos bem escritos e sérios sobre esta matéria.

    Um abraço

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  2. Luís

    Agradeço as suas palavras que, vindas de si, são um elogio. Muito obrigada.
    Realmente, tentei dar uma ideia dos estilos decorativos(?) para a faiança do século XVII. Partindo da abordagem de Reinaldo dos Santos e tendo em conta os importantes contributos das escavações arqueológicas que têm decorrido em diferentes locais, é-nos dada uma visão mais clara e abrangente desses períodos e das suas características.
    Alguns motivos decorativos repetem-se em produções cerâmicas mais avançadas no tempo. É o caso do coração asseteado, que também faz parte da gramática decorativa da faiança ratinha.
    A faiança é um mundo, muito dele ainda inexplorado.

    Um abraço
    Ivete

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  3. Bem, qualquer acervo que tenha estas peças estará de parabéns, pois estas sim são peças de museu e de primeira água. Não acredito que ainda existam destas peças pelo mercado, e se isso acontecer, deve ser por milagre e a preço proibitivo.
    Gostei muito deste seu resumo, que, ainda por cima está ilustrado como deve, com uma explicação para cada motivo, o que lhe aumenta o interesse.
    Não se vêem só os motivos como se descortina a sua filiação.
    Durante muito tempo, quando me falavam na "louça de aranhões", não sabia a que se referia, só bastante mais tarde, e durante uma visita ao Museu de Arte Antiga, descobri a sua relação com as folhas de artemísia da louça oriental do período Ming.

    É interessante verificar também que, mais tarde, pós Reynaldo dos Santos, se chega à conclusão que o período áureo da faiança portuguesa se situar entre 1610-1635, alguns anos antes dele a ter classificado como tal (Revista portuguesa de arqueologia, 2013, volume 16 - numa artigo dedicado à Faiança Portuguesa de Tânia Manuel Casimiro). Como a própria história da faiança vai avançando com os estudos que se vão fazendo, trazendo a lume coisas novas.
    Também li no volume dedicado à Faiança de Estremoz, de Sven Staff, que o motivo das rendas seria mais caraterístico da região de Coimbra (pg, 23), e não encontro razões plausíveis para tal. Porquê Coimbra?
    Nem sequer é um centro de rendas muito importante, pois estes situam-se muitas vezes junto a zonas do litoral, quiçá numa associação com as redes de pesca.
    De qualquer forma quero agradecer-lhe muito este seu post, o qual é uma belíssima lição para quem quiser aprender, de uma forma rigorosa, como aliás, é a única forma de o fazer, sem se cair no ridículo do "diz que diz", ou de ter ouvido a D. Marquinhas que me disse que fulano de tal disse isto e aquilo.
    Um bem haja por o ter feito desta forma tão apelativa, ordenada e ilustrada, para além de rigorosa, como aliás seria bom que fosse feito sempre
    Manel

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    1. Manel
      A colecção que me foi proporcionada fotografar é magnifica. Muitas vezes nem sei bem o que seleccionar, tal a sua diversidade e riqueza.
      Ainda ficaram algumas peças por mostrar. Fica para um próximo capítulo...
      De todas as famílias decorativas aquela de que mais gosto é a das rendas.
      Concordo com o Manel quanto a ficarmos em silêncio perante a exibição de sapiência de alguns vendedores. O melhor é calar porque, de outro modo, podemos dizer alguma coisa de que nos venhamos a arrepender.
      Conheci e privei pessoalmente com o Dr. Rafael Calado. Era uma pessoa amável e discreta, que esclarecia qualquer dúvida, sem fazer alarde dos seus conhecimentos.
      Ivete

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  4. Que bela apresentação de peças magníficas!
    Encantam-me sobretudo porque me parecem todas de pequenas dimensões e assim sobressaem mais os motivos.
    Para além das fotos, o texto muito claro, sucinto e elucidativo torna este poste uma referência para os entusiastas da boa faiança portuguesa.
    Quanto ao motivo das rendas, apesar de ter a obra de Sven Staft, não me lembrava da afirmação que o Manel refere. Também a acho estranha, até porque as rendas aparecem nos azulejos dos frontais de altar do séc. XVII, e são todos fabrico de Lisboa, segundo tenho lido.
    Mas tem havido realmente desenvolvimentos recentes nos estudos da cerâmica antiga e algumas dúvidas, felizmente, ir-se-ão esclarecendo.
    Um abraço

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    1. Maria A.
      Concordo consigo quando diz que os motivos, apesar das semelhanças, apresentam sempre pequenos pormenores que os diferenciam. Felizmente que têm vindo a surgir estudos, principalmente baseados na arqueologia, que trazem novos contributos para o conhecimento e datação da faiança.
      Um abraço

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  5. Olá, gostei muito do seu blog.Obrigada. Foi uma boa liçao a que hoje tive oportunidade de ter agora completada com a explicaçao supra. Confesso que estou cada vez mais curiosa com o tema pela sua riqueza e história associadaObrigada.

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    1. Obrigada pelas suas simpáticas palavras. Ainda bem que gostou e ficou atenta a este tema sempre tão interessante.

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