quarta-feira, 10 de junho de 2015

O motivo decorativo contas na faiança setecentista







Um conjunto de faiança com a tipologia decorativa conhecida por "contas". Peças que resistiram ao tempo, bem conservadas, vocacionadas para uma  exposição, em lugar de destaque. Peças de aparato, fugindo ao uso quotidiano, por tal preservadas ao longo de gerações. 
O traço de união que observamos são as faixas decorativas de contas, circunscritas por círculos concêntricos, servindo de enquadramento ao motivo central: ramo florido e ave segurando um ramo no bico. A pequena terrina, graciosa no seu formato redondo, completa harmoniosamente o conjunto.
Tal como outros tipos decorativos setecentistas, nomeadamente as rendas e a faixa barroca, caracterizam-se pela decoração de azul cobalto, contornada a roxo de manganés. É conhecida uma excepção: um canudo que integra o acervo do Paço Ducal de Vila Viçosa, no qual o azul deu lugar ao verde de cobre.



In " Cerâmica de Coimbra do século XVI-XX", pág.45
Na parte central deste canudo, observa-se uma faixa dupla, na qual alternam grupos de seis contas, mais raros, nos tons verde e manganés, numa peça de formato mais invulgar.

Os grandes centros produtores deste tipo de faiança eram Lisboa e Coimbra. Datável essencialmente do primeiro quartel do século XVII, foi sendo produzida ao longo de  toda a centúria, chegando ainda também ao século XVIII. Já da segunda metade de setecentos, uma peça datada 1767, ainda com um rebordo de contas, se bem que desenhado e executado de um modo mais fugidio e rápido.
Leiloeira S.Domingos, leilão nº63, Outubro 2011, lote nº525



Exemplar semelhante, atribuível ás olarias do Monte Sinai, em Lisboa, integra o acervo do Museu de Évora. Foi recuperado em 1990, aquando das escavações arqueológicas realizadas na área ocupada pelo antigo convento dominicano de Santa Catarina de Sena. 



Segundo Miguel Cabral de Moncada "atribui-se a designação de Decoração de Contas  aos objectos produzidos na segunda metade do século XVII contendo uma faixa ou uma tarja decorada com grupos de três ou seis "Contas" colocadas em triângulo, assemelhando-se à cabeça de "um ruyi"1.
A continuidade da existência deste tipo decorativo, durante o século XVIII, mostra a importância das famílias de oleiros que prolongavam estas decorações nas peças que produziam. À semelhança das olarias de Lisboa, também as coimbrãs utilizaram largamente este motivo. 


MNAA, inv.6213, foto José Pessoa


Os fragmentos de faiança portuguesa recuperados nas escavações arqueológicas que se vão realizando um pouco por todo o mundo revelam a sua importância, pois testemunham o apreço em que era tida a louça produzida em Portugal, bem como comprovam os contactos comerciais mantidos com locais tão distintos e longínquos.
O conhecimento documentado de naufrágios de naus portuguesas que no seu bojo transportavam faianças portuguesas destinadas a alimentar o comércio ultramarino é importante para determinar a sua datação e centros produtivos.
Dois casos elucidam esta informação. O naufrágio da nau Santo António de Taná, que saiu de Goa com destino a Mombaça e naufragou em 20 de Outubro de 1697, ao largo do Quénia. Parte do seu carregamento consistia em faiança, que abastecia as feitorias e funcionava como elemento de troca que fomentava o comércio dessas zonas.Algumas das peças recuperadas, decoradas  com o motivo de contas, encontram-se no Museu Nacional do Quénia.
Também a carga do galeão Sacramento, naufragado ao largo de Salvador da Bahia, em 5 de Maio de 1668, revelou um largo espólio, entre ele imensas peças de faiança, cuja imagem se reproduz:


Revista Oceanos, Nº 22, Abril/Junho 1995, pág.13



Por fim, uma peça que nos apresenta o busto de uma senhora. Ocupando o centro da caldeira, revela, no traço e nos ornamentos, uma modernidade que está muito além das  decorações setecentistas suas congéneres.
Os bustos de senhoras representados usualmente na faiança desta época registam grandes toucados, alguns bem fantasiosos. No caso presente, a linha de rosto foi delineada com um traço leve e preciso, conferindo à imagem elegância e mistério. O toucado, bem cingido à cabeça, remete-nos para uma rede, ornamentada com pérolas, que deixa visualizar alguns caracóis de cabelo. A restante superfície, deixada na cor do esmalte estanífero, acentua a beleza da composição central. A decoração remata com uma leve cercadura de contas.








Esta peça integrou a colecção do Comandante Vilhena, como se comprova pelo selo que tem afixado no tardoz.
Agradeço ao seu proprietário ter permitido a sua publicação.

1 - Miguel Cabral de Moncada " Faiança portuguesa Séc XVI a XVIII", Scribe, 2008, pág.116.
Revista Oceanos, Nº 22- Abril/Junho 1995
Alexandre Pais, António Pacheco, João Coroado "Cerâmica de Coimbra", Edições Inapa, 2007







4 comentários:

  1. Cara Ivete

    Belas peças que apresentou, acompanhadas de uma boa explicação. É curioso, pois algumas peças de cantão popular, apresentam por vezes um motivo decorativo muito próximo dessas contas. Não sei exactamente se por mera coincidência, se por inabilidade do artista que queria representar nuvens, mas o que é certo é que o resultado final são umas contas muito semelhantes a do prato com a figura feminina. Hei de mandar-lhe uma fotografia de uma desses pratos de cantão poular e que nem sequer é dos mais antigos.

    um abraço

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  2. Luís

    As surpresas que a nossa faiança nos reserva são incontáveis. Como já muitas vezes se referiu, quando pensamos saber um pouco, verificamos que as nossas quase certezas se tornam em dúvidas e incertezas... depois, partimos, de novo, em busca de respostas. O fascínio está nessa procura e na partilha dos conhecimentos que a experiência com o contacto com as peças nos vai proporcionando. Fico à espera das fotografias do seu prato.

    Um abraço
    if

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  3. Nunca consigo deixar de admirar a capacidade para o desenho que têm estes artesãos.
    Não sei bem se os denomine de artesãos ou de artistas, pois criatividade não lhes falta e capacidade de recriar a partir de modelos que, ainda que lhes sejam estranhos, continuam a ser uma fonte de interpretação única, que afinal acabou por estender a nossa cerâmica para fronteiras desconhecidas.
    Fico sempre abismado perante esta capacidade humana!
    Parece milagre!
    E, talvez, estes artesãos/artistas até fossem pouco considerados, como produtores de uma arte menor!
    Agradeço sempre este seu esforço de aqui nos trazer peças invulgares e belas, testemunho da nossa arte cerâmica passada
    Manel

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    1. Manel
      As suas reflexões são pertinentes e justas. Artesãos ou artistas, o que é certo é que, pese embora se inspirassem em modelos mais elaborados, as peças que produziam estavam plenas de graça e criatividade.
      Quanto à ideia errada que, infelizmente muitas pessoas pensavam, de que a cerâmica e outras artes decorativas eram artes menores, com o tempo as opiniões têm vindo a sofrer uma alteração. Só nos falta uma Museu das Artes Decorativas, para que, condignamente, possamos admirar toda a beleza que elas possuem.
      if

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