segunda-feira, 21 de julho de 2014

Um gato ... ratinho







Belíssima palangana, de dimensões invulgares - 36,7 cm -, rica nas cores e no tema: um imponente, mas pachorrento, gato, que nos olha, de modo felino e intrigante, do meio das plumas que o rodeiam.
Com ele está associada uma discussão/debate recorrente: Gato ou mocho? Mocho ou gato?
Se bem observarmos e atentarmos nos pormenores: olhos amendoados, orelhas ponteagudas, bigodes numa cara arredondada; patas bem assentes, tudo nos aponta para esta fera doméstica. 
O modelo poderia bem ser o exemplar tigrado que habitasse a casa do oleiro e  gostasse de se passear pela oficina.
O pintor, num rasgo de originalidade, captou-lhe a expressão e registou-a, qual fotografia, no covo da peça.
Conferiu-lhe um ar vanguardista - talvez com alguma influência de Picasso -, com elementos fisionómicos desacertados e não coincidentes. Qual janela bem florida, enquadra-se numa moldura formada por duas plumas de pavão que, partindo da base, sobem pela aba e se unem no topo. Pinceladas intensas e cheias, numa alternância de tons verdes, azuis e amarelo ocre, demonstram a mestria do artista. Um traço forte, neste último tom, realça o conjunto.



Produzido numa qualquer oficina anónima, das muitas que existiam na cidade de Coimbra, saiu das mãos, também anónimas, de um artesão. Utilizou-se a pasta mais pobre e grosseira, a que primeiro se acumulava nos barreiros e era usada para confeccionar  as "faianças mais ordinárias a que se dá o nome de ratinhas"1.
Dado que era uma faiança destinada às camadas populares, de menores recursos económicos, a aplicação apressada e menos cuidada do vidrado estanífero não foi bem sucedida.  Daí apresentar deficiências - zonas de chacota expostas - demonstrativas de uma colocação desatenta, como se pode ver na imagem.








PCV, Leilão 201, Outubro 2008, pág.125
Uma outra palangana com 35,5 cm de diâmetro, também representando um gato, sentado numa posição pouco comum. Apesar da ingenuidade dos traços a envolvente florida confere-lhe realce e alguma graça.

Estes dois exemplares integram a categoria da decoração zoomórfica da Faiança Ratinha. Nesta, as espécies mais figuradas foram as aves e os peixes. Outros animais, como é o caso destes gatos, são mais raros. Outros, ainda, como cães, cavalos, ovelhas, etc., complementam o esquema organizativo, enriquecendo o motivo central.


1 - Charles Lepierre -"Estudo Chímico e Tecnológico sobre a Cerâmica Portuguesa Moderna", Lisboa,Boletim do Trabalho Industrial, 1912, pág.119.
Catálogo do Palácio do Correio Velho, Leilão nº 201, Outubro de 2008, lote nº 227





segunda-feira, 14 de julho de 2014

Uma flor...uma bonita flor






Uma flor
Uma pequena flor,
Eu colhi
Estava a pensar em ti
(...)
Entre Aspas, "Edelweiss", 1997



Uma flor... Uma flor oferecida...  Uma flor para a enamorada...

Um original prato de faiança coimbrã, provável produção de Brioso - precursora da Faiança Ratinha-, demonstrativo da ingénua fantasia do oleiro que o executou. Ornamentação sui generis, com um par amoroso, em que o homem oferece uma flor, num gesto enamorado, em que transparece a sua afeição pela formosa (?) dama.
O par, trajando à moda de finais do século XVIII, ele de calção, meia branca e casaco cintado, ela de saia e sobressaia, com anquinhas e um decote muito pronunciado e malicioso, mostra uma certa incongruência nas formas. A mulher, mais alta, ocupa metade do covo, estendendo-se para a aba. Podemos pressupor que deve ter sido delineada em primeiro lugar, pelo espaço mais reduzido  que o seu par ocupa. A fim de obstar à sua menor estatura, o pintor teve que altear a base onde ambos assentam, a fim de que as suas faces  ficassem ao mesmo nível visual. É interessante o facto de os corpos se encontrarem de frente para os espectadores, mas as caras se apresentarem de perfil. Numa composição bicromática, unicamente nos tons azul cobalto e manganés, conseguiu-se uma decoração rica de pormenores, mas ingénua nos seus traços gerais. Uma ornamentação formada por pequenas cartelas, cheias com filamentos cruzados, enriquece a aba.





A designação "Brioso" provém de um ceramista oleiro de Coimbra, António da Costa Brioso,  identificado nos finais do século XIX, por António Augusto Gonçalves. A produção de Coimbra, de finais do século XVIII, de melhor qualidade era, genericamente, atribuída a Vandelli. Porém, no momento em que se descobriu uma pequena travessa, datada e assinada "Brioso, 1779", as dúvidas desfizeram-se: a manufactura de Brioso antecedia, em cinco anos, a fundação da fábrica de Vandelli. 
Ironizando - e contribuindo, também, para dilucidar a situação Brioso/Vandelli -, é de evocar o seguinte trecho, escrito por uma das freiras mais novas do Mosteiro de Lorvão, D. Inês Benedita, aquando de um infeliz acidente, em que um bule, tido em grande estima pela sua possuidora, se quebrou:  "Não foi, senhora, no distante clima da China, ordinária pátria dos bules, que nasceu o meu herói; Coimbra, esta lusa Athenas de Portugal, lhe serviu de berço, e para que nascesse logo com avultados brios, contam os historiadores que foi Brioso o seu augusto projenitor. Brioso, este homem, que despresou a aliança com a illma. fabrica de Vandelli, que o pretendeu para consorte, e só achou a exma sra D. Olaria digna esposa a seus altos merecimentos, sendo inumeravel a descendência que deu a todo o reino e fora d'ele. Foi sempre o ellmo sr. D. Bule de Barros (de quem choramos hoje a perda), o filho mais dilecto do seu coração, vendo-se desde a infância tão melindroso como vidrento e fazendo biquinho a tudo quanto via. Ele receia embarca-lo para a América ou expô-lo nas lojas à censura do publico"1.





1 - Charles Lepierre "Ceramica Portuguesa Moderna", Lisboa, 1899, págs: 235 e 236.
Alexandre Pais, António Pacheco, João Coroado "Cerâmica de Coimbra", Edições Inapa, 2007
"Estudo sobre o Estado Actual da Industria Cerâmica", Lisboa, Imprensa Nacional, 1905.




segunda-feira, 30 de junho de 2014

Faiança do século XVII: alguns tipos decorativos



Faiança do século XVII

Por faiança entendem-se "todos os corpos cerâmicos, independentemente da forma, revestidos a esmalte estanífero"1.
Publicações recentes, baseadas em "peças exumadas em contextos arqueológicos"2, permitem colocar, embora com alguma (in)certeza, a produção de faiança estanífera em Portugal, já a partir de finais do século XVI.
Ultimamente, as escavações arqueológicas e a arqueologia subaquática, muitas delas realizadas em diferentes zonas do mundo - tendo em conta os locais onde os Portugueses chegaram ou navegaram - deram, em termos de datação cronológica, um contributo precioso para esclarecer as muitas dúvidas que perduram e que, não obstante, continuam de difícil esclarecimento.
Reinaldo dos Santos apontou quatro grandes períodos para a faiança do século XVII, fazendo-os corresponder aos quatro quartéis do século.  O segundo período, que apelidou de "áureo", era, em sua opinião, aquele que melhor expressava a produção deste século, porquanto foi, nessa época, o segundo quartel do mesmo, que passaram a inserir-se elementos decorativos portugueses numa ornamentação maioritariamente oriental. Em seu entender, teriam sido, então, também introduzidos na paleta cromática o manganés e o amarelo,  surgindo temas decorativos nacionais relacionados com a Restauração, tais como soldados e brasões reais.
Inicialmente, a organização ornamental da faiança seiscentista denota profundas influências orientais, reproduzindo, com bastante fidelidade, a decoração da porcelana do período Wan-li, dado que a procura por parte das elites é muito forte, havendo, para esta produção cerâmica nacional, mercado certo, nomeadamente na Alemanha, onde se encontra grande número de exemplares.
No entanto, vão aparecer novos elementos decorativos nascidos da própria imaginação dos artistas pintores, que  introduzem elementos externos à gramática oriental. Daí  a inserção de temas de origem portuguesa, mantendo, no entanto,  uma clara predominância decorativa oriental - soldados armados,escudos e figuras tipicamente ocidentais-, tendo em conta a recente independência face a Espanha.
Uma tão profícua diversidade de elementos ornamentais, permite a agregação em famílias decorativas: desenho miúdo, aranhões, faixa barroca, rendas, contas, conventual.


Todas as peças que de seguida se apresentam são de dimensões reduzidas, variando entre os dezoito e vinte e dois centímetros. Contrastando com as de maiores dimensões - as peças de aparato, destinadas unicamente a ser vistas - revelam sinais de uso, permitindo concluir que eram efectivamente utilizadas pelos seus possuidores.


Prato oitavado, com Decoração de Desenho Miúdo, a azul cobalto, com contornos a vinoso de manganés. Uma cartela central, com a palavra ESCUTA, entre flores. Uma miscelânea de elementos vegetalistas e zoomórficos percorre a aba.
Esta família decorativa caracteriza-se por combinar elementos decorativos orientais e ocidentais, numa pulverização que se espraia por toda a superfície da peça.





Pequeno prato com Decoração de Aranhões, a azul cobalto e vinoso de manganés. O nome desta família decorativa provém dos elementos decorativos das abas, os quais mais não eram que as interpretações feitas pelos artesãos da ornamentação oriental usada na porcelana chinesa.





Duas peças com Decoração de Faixa Barroca. A designação desta família decorativa atribui-se aos "objectos produzidos na segunda metade do século XVII, contendo uma faixa ou tarja decorada com folhas de acanto estilizadas"3. Para além dos pratos, foi  também usada noutro tipo de peças, como canudos de farmácia e bacias de barba. Contêm as mesmas cores: azul de cobalto e vinoso de manganés: no primeiro, a letra F surge enquadrada entre vegetação; no segundo, uma paisagem com árvores e rochedos. Ambos apresentam, nas abas, cercaduras formadas por enrolamentos de folhas de acanto.







Pequeno exemplar com Decoração de Rendas. A flor central, unicamente em azul cobalto, mostra uma ornamentação densa e rica, de arcos e volutas, decoradas com rendas. Numa clara demonstração do horror vacui, o artista preencheu toda a superfície da peça.
O nome desta família decorativa tem, como provável origem, as rendas usadas no "vestuário português de quinhentos e seiscentos"4. 






Decoração de Contas. Ao centro sobressai um coração asseteado, circunscrito por círculos concêntricos, entre grupos de três contas, inseridas num triângulo. A aba mostra o mesmo esquema decorativo. Os mesmos tons: azul cobalto e vinoso de manganés.
A temática desta família decorativa, datável essencialmente da segunda metade do século XVII, continuou a ser usada ao longo mesmo século. Mais não é que a interpretação feita pelos nossos oleiros de um tema da porcelana chinesa, a cabeça de um ruyi, exprimindo poder e boa sorte. 






Uma faiança com uma ornamentação extremamente simples, conhecida por Conventual, uma vez que muitas destas peças procediam de encomendas feitas principalmente por conventos e personalidades ligadas a casas religiosas. 
Apresentam uma decoração muito simples, na qual a ausência de ornatos é manifestamente demonstrativa de uma inspiração mais arcaica. O fundo é esmaltado de branco, nele sobressaindo o azul cobalto e, mais tarde, também o vinoso de manganés. Este tipo de faiança perdurou até meados do século XVIII. 
Prato com as armas da Ordem de São Domingos ao centro, despojado de qualquer outra decoração.




Uma outra peça que, pelo singelo da ornamentação, também cabe nesta categoria. É um prato, talvez de produção exclusiva para a sua encomendante, "D. Thereza Maria". A inscrição do nome surge rodeada por uma grinalda de flores.






A faiança do século XVII constitui matéria de atracção irresistível, não só por representar historicamente o início da produção de faiança em Portugal como pela riqueza e diversidade das decorações oferecidas.
Agradeço ao seu proprietário a  partilha das peças apresentadas.




1- Casimiro, Tânia de Oliveira e Alves " Faiança Portuguesa nas Ilhas Britânicas (dos finais do século XVI até inícios do século XVII)", dissertação de doutoramento apresentada à FCSU, UNL, 2010, texto policopiado.
2 -Tânia Manuel Casimiro "Faiança Portuguesa: datação e evolução crono-estilística", Revista Portuguesa de Arqueologia, volume 16, pág. 352.
3/4- Miguel Cabral de Moncada "Faiança portuguesa Séc. XV a XVIII",  Scribe, 2008, págs.98 e 111.
Rafael Salinas Calado "Faiança Portuguesa", Correios de Portugal, 1992.






sábado, 21 de junho de 2014

Uma manhã tímida de Sol...

Uma manhã no Príncipe Real...

Dia 21 de Junho, início do Verão, manhã tímida de Sol. 
Partiram, a Catarina e a avó, numa aventura à descoberta de uma zona da cidade - o Príncipe Real.





Jardim de traçado romântico, ao gosto inglês, assim idealizado em meados do século XIX. Destaca-se o grande Cedro-do Buçaco, com os seus vinte metros de diâmetro. Espaço verde por excelência, as suas esplanadas e quiosques típicos acolhem, quer a população do bairro, quer  o grande número de turistas que o incluem na sua rota de visitas.


Nas manhãs de sábado, aí se realiza um mercado de produtos biológicos. A Catarina, consciente da importância  dos produtos naturais,  indica aqueles que, segundo a sua douta experiência, são os melhores para a nossa alimentação.

Saídas do jardim, iniciaram a sua viagem exploratória. Foram espreitar o Jardim Botânico, onde decorria uma Feira de Artesanato.





O encanto das barraquinhas encantaram-na. Observadora, mas indecisa, não sabia bem que direcção tomar. Nem as tabuletas indicativas lhe valiam... 







Acolhe-se, pensativa, à sombra frondosa de árvore.  Que caminho seguir?... 
Num repente, decide-se. Vamos por ali! E corre, apressada, para uma mancha colorida e rosada: os chás.


A gentileza e simpatia da senhora, com um belo chapéu de palha, à boa moda saloia, eram contagiantes. Com um sorriso e sempre versejando, em rimas criativas, anunciava as virtudes dos diferentes chás

Caminhámos um pouco mais... Os seus grandes olhos castanhos  iluminaram-se. Avistara ...a sua grande paixão: enfeites para o cabelo. 

Imagem retirada de www.facebook.com/meggcraft

A partir de páginas de revistas, a artesã criou artísticas rosas em papel, na velha arte do origami. Difícil foi seleccionar. Tantas! Tão bonitas e vistosas! 




Cansada, quer regressar. O autocarro atrasa-se. Há tempo para uma pausa. Um café, para a avó e um croquete para a neta.




Um beijo muito grande da avó. Quando repetimos a aventura?









terça-feira, 10 de junho de 2014

Registo de Santo António


O Passeio de Santo António

Saíra Santo António do convento
A dar o seu passeio costumado
E a decorar, num tom rezado e lento
Um cândido sermão sobre o pecado.

Andando, andando sempre, repetia
O divino sermão piedoso e brando,
E nem notou que a tarde esmorecia
Que vinha a noite plácida baixando.

E andando, andando sempre, viu-se num outeiro
Com árvores e casas espalhadas,
Que ficava distante do mosteiro
Uma légua das fartas, das puxadas.

Surpreendido por se ver tão longe,
E fraco por haver andado tanto,
Sentou-se a descansar o bom do monge, 
Com a resignação de quem é santo...

O luar, um luar claríssimo nasceu, 
Num raio dessa linda claridade,
O menino Jesus baixou do céu,
Pôs-se a brincar com o capuz do frade.

Perto, uma bica de água murmurante
Juntava o seu murmúrio ao dos pinhais...
Os rouxinóis ouviam-se distante,
O luar, mais alto, iluminava mais.

De braço dado, para a fonte, vinha
Um par de noivos todo satisfeito,
Ela trazia ao ombro a cantarinha, 
Ele trazia...o coração no peito.

Sem suspeitarem de que alguém os visse,
Trocaram beijos ao luar tranquilo.
O menino, porém, ouviu e disse:
- Oh Frei António, o que foi aquilo?

O santo, erguendo a manga de burel
Para tapar o noivo e a namorada,
Mentiu numa voz doce como mel:
-Não sei que fosse. Eu cá não ouvi nada.

Uma risada límpida, sonora,
Vibrou em notas de ouro no caminho.
-Ouviste, Frei António? Ouviste agora?
-Ouvi, Senhor, ouvi. É um passarinho...

-Tu não estás com a cabeça boa...
Um passarinho a cantar assim!...
E o pobre Santo António de Lisboa
calou-se embaraçado, mas por fim,

Corado como as vestes dos cardeais, 
Achou esta saída redentora:
- Se o Menino Jesus pergunta mais,
... Queixo-me à sua mãe, Nossa Senhora!

Voltando-lhe a carinha contra a luz
E contra aquele amor sem casamento,
Pegou-lhe ao colo e acrescentou:- Jesus
                                                   São horas...
                   E abalaram para o convento.
                                                                Augusto Gil




Em época de Santo António, entendi justificar-se uma representação que a ele - figura que penetra tão profunda e transversalmente no imaginário da sociedade portuguesa -  respeita.
Num oratório, estaria este pequeno registo de cerâmica, executado em forma de coração,  idealizado pelo coração puro de uma freira, que assim via, afectuosamente, os santos da sua devoção.
O Menino, ao colo de Sua Mãe, estende os braços para Santo António. Trata-se de um trabalho conventual, minucioso e delicado. As suas  pequenas dimensões, e todo o interior, requereram mãos primorosas, de artista, capazes de conceber, com graça ingénua, uma decoração tão subtil.
A forma de coração - ideal da afectividade - e o material duradouro em que foi concebido simbolizam, na perfeição, a perenidade da aliança emocional e estética entre o sagrado e o humano.

O coração humano pulsa. O coração de barro, em chamas, mostra a fé ardente e pura de quem o moldou. Esvaziado do seu conteúdo terreno, amorosamente foi  preenchido com uma composição poética, de pequenas flores e cabeças de anjos que envolvem as figuras sagradas e santas. A sua ingenuidade comove. Toca-nos e deixa-nos sem palavras. A capacidade de expressão foge, ficando a beleza de um voto de fé, de alguém, de um qualquer convento, que assim se manifestou. 




Este exemplar, um dos vários de uma colecção que a seu tempo mostrarei, vai integrar, em data breve, a exposição do Museu Antoniano, a propósito das celebrações de Santo António de Lisboa.


Moldado como  um verdadeiro coração, a que não faltam as veias e artérias, mostra duas pequenas aletas, expressando as chamas que incendeiam de fé e amor espiritual os que o contemplam. Ao jeito dos registos e a rematar o trabalho da sua autora, uma fita de passamanaria e uma renda envolvem toda a estrutura. 


Estas singelas obras-primas, manifestações artísticas elaboradas na serenidade da vida conventual, eram, muitas vezes, oferecidas às visitas, quando, em dia de abertura ao exterior, lhes era permitido contactar com familiares e amigos.
Como sempre, agradeço a disponibilidade manifestada para a partilha e publicação destas imagens. 






terça-feira, 3 de junho de 2014

Ex votos,promessas, milagres




Testemunhos de graças recebidas, os ex-votos, quadrinhos ou milagres, são pequenos quadros que expressam de forma inequívoca a devoção e arte populares. Executados sobre madeira, tela ou cobre, eram "histórias contadas, em vivo colorido, da vida dos homens, episódios de desgraça e dor que terminavam num final feliz"1, oferecidos às capelas ou igrejas do santo invocado e por intercessão do qual se concretizara o pedido. Portadores de pequenas legendas, muitas vezes imprecisas ou com erros de ortografia, numa linguagem não erudita, não deixam, no entanto, de ser uma manifestação de fé, ingénua, mas convicta, e um agradecimento sentido pela mercê concedida. Este tipo de ex-votos datam, de um modo geral, dos séculos XVIII e XIX.
Modernamente, encontram-se, com igual propósito, muitas fotografias, intercaladas com representações mais antigas, simbolizando os agradecimentos pelas promessas feitas e entretanto concedidas. Muitas remontam à época da Guerra do Ultramar, décadas de sessenta e setenta do século passado, mostrando, principalmente, soldados na sua farda de militares.
Sob diversas invocações, os ex- votos relatam situações e vivências difíceis,só ultrapassadas e vencidas por verdadeiro milagre.




Neste, invoca-se a protecção de Nossa Senhora do Bom Sucesso para uma parturiente que "estando cinco dias prigozamente de parto sem poder vir com a criança a lus" a Ela recorreu e foram salvos, mãe e filho.
Estas pinturas, muitas vezes ingénuas, pelo carácter naif da sua execução, dão preciosas informações, sobre o seu contexto histórico e social. 
De um modo geral, em todos eles se pode observar uma clara definição de dois espaços de representação: o sagrado e o terreno. No presente ex-voto, à direita, envolta numa nuvem, encontra-se Nossa Senhora com o Menino nos braços.
No espaço restante, dispõem-se as demais figuras intervenientes: o pai, ajoelhado e de mãos postas, frente à imagem. O "Sorgião" indicando a figura de recém-nascido, a mãe, desfalecida, nos braços de outra senhora. Pelos trajes, requintados, das figuras, de finais do século XVIII, que se adequam à data indicada - 1769 - e pelo mobiliário - uma cama de bilros, "ornada de muitos pequenos elementos de torneado verticais, intercalados de travessões e remates entalhados"2 - podemos concluir  tratar-se de uma família abastada. 



Este ex-voto encanta pelo delicado e singelo tema: um milagre de S. Francisco que curou um menino que estava doente com "maleitas". A mesma organização cénica: à direita, a figura de S. Francisco, envolvido por uma nuvem, significando a força espiritual. À esquerda, a figuração do votante: o menino, de mãos postas,  ajoelhado, agradece a mercê da sua saúde pois  "foi o Santo servido de tirar-lhas".


Muitas vezes os temas estavam ligados à vida quotidiana das populações. Indicavam as suas profissões e as condições em que tinha acontecido o desastre. É o caso deste ex-voto.


Aqui invoca-se N. Srª. dos Remédios. O espaço cénico alterou-se. A imagem da Senhora encontra-se num altar, à esquerda. A família, aos pés de cama, reza pelas melhoras do seu doente. O acidente, causado por uma bomba de dinamite que rebentou quando estava a "abranger" fogo a um fogueteiro, ocorreu em "Simfens", no dia 4 de Agosto de 1888. O médico aponta para a cabeça do doente, enquanto o padre administra a Extrema Unção. Pelo mobiliário retratado podemos intuir que existia algum desafogo financeiro.




Um  exorcismo. Sob a invocação de N. Srª. das Dores, envolta nas nuvens que estabelecem a fronteira entre o profano e o divino, é concedida a saúde a Maria do Rosário, que estava "vexada do enemigo". Esta, de joelhos, agradece. O mafarrico, encurralado pela acção conjunta de N. Srª. e do padre, foge...





Para o grande final, uma parede plena de graça e exotismo. Uma belíssima colecção de ex-votos. Agradeço a gentileza e a disponibilidade manifestadas, que permitiram a sua partilha.

1- Alberto Correia "Do Gesto à Memória Ex-Votos", IPM, 1998, pág.7.
2- Robert Smith "Pinturas de ex-votos existentes em Matosinhos e outros santuários portugueses", Matosinhos, 1966, pág.6.

domingo, 25 de maio de 2014

Faiança de Miragaia (?)

Faiança de Miragaia (?)




Noblesse oblige! 
Os excelentes textos publicados sobre esta faiança pela Maria Andrade e pelo Luís Montalvão tiveram o efeito de despertar em mim o  interesse por esta fábrica e pela sua produção.  Quer em leilões, quer em feiras de velharias e antiguidades, o meu olhar, agora mais direccionado, fez-me cobiçar algumas peças. Foi o caso desta terrina e deste galheteiro que, pela pasta mais fina, pelo azul cobalto, pelo esmalte brilhante, poderão ser  atribuídos (?) a Miragaia.
João da Rocha, natural de Sabadim, Arcos de Valdevez, regressado do Brasil, onde enriquecera, fundou e construiu a sua fábrica em terrenos anexos à Igreja de Miragaia. A sua laboração iniciou-se em 1775. Para tal, "contratou três oficiais que vieram do Rio de Janeiro, dois da fábrica do Rato e quatro da de Massarelos, todos eles portugueses e por consentimento dos proprietários das respectivas fábricas"1. Após a sua morte, em 1779, o seu sobrinho e herdeiro, João da Rocha Soares, vai tomar a direcção da fábrica, depois de regressar do Brasil. Em 1827 (2) ou 1830 (3), e para fazer face à crescente concorrência da porcelana inglesa, introduziu-se a produção de louça em "formas, imitando-se os respectivos tipos estrangeiros, sobretudo os ingleses"4. Segundo Vasco Valente, corresponde ao segundo período de laboração da fábrica, compreendido entre 1827 e 1840. Passa, nesta fase, a produzir "faiança tipo inglês, esmalte estanífero branco, pintura monocroma azul, sobre decalque obtido pelo processo de gravura em cobre"5.

Fábrica de Louça de Miragaia, pág. 216

É a este período que correspondem as marcas MP ou Miragaia/Porto, por vezes envolvidas em ramos de louro.


Esta terrina moldada, de forma oval, com o bojo arredondado e colo baixo, apresenta alguns elementos que indiciam uma possível (?) produção de Miragaia. A decoração pintada e estampilhada, completada com alguns elementos de execução manual, revela a influência oriental nas construções, uma delas coberta com cúpula, rodeada por vegetação exuberante. A paisagem está inserida numa cartela, que se destaca pela cor forte do azul que a envolve. As diferentes nuances dos azuis, permitem uma noção de perspectiva e profundidade. Limita-a, na parte inferior, uma palma .







A tampa mostra a mesma composição decorativa. Remata com uma pega em forma de flor, inserida num conjunto de pétalas relevadas. Os azuis degradés enriquecem a composição decorativa.



Um pormenor delicioso nas asas: dois pássaros, afrontados, talvez simbolizando um casal de noivos, porquanto era usual, em algumas regiões,  oferecer peças de faiança como prenda de noivado.




Neste pequeno galheteiro, com galhetas desiguais, embora de ornamentação idêntica, sobressaem as flores que caracterizam e apontam, com grande probabilidade, para o segundo período da produção de Miragaia, balizado, como se disse, entre 1822-1850. Apesar da dissonância das galhetas, o cômputo geral agrada pela elegância, pela dimensão e pelas cores.
Constituído por base com duas partes circulares, onde encaixam as galhetas, de base arredondada, estreitecendo e terminando num elegante bico. A base apresenta, ainda, uma pequena caldeira, com tampa canelada. A pega, de forma auricular, sustenta toda esta estrutura. A decoração de flores brancas, num fundo azul, é semelhante à de muitas peças assacadas a esta fábrica.


Adquirido num leilão, onde parecia perdido e a pedir que lhe dessem uma oportunidade de brilhar e de fazer valer os seus direitos de peça "genuína miragaiense" (?), quando chegou e enfrentou os galheteiros congéneres  não se coibiu de gritar bem alto, com o seu belo sotaque tripeiro, a sua genealogia: sou de Miragaia (?)! Sou de Miragaia (?)! Nasci do trabalho conjunto das mãos capazes do oleiro e das mãos prodigiosas do pintor, que me deram esta forma delicada e estas cores, que lembram o azul do mar, em dias de calmaria.




1/3/4 - Luís Augusto de Oliveira, " Exposição Restropectiva da Cerâmica Nacional em Viana do Castelo", Porto, 1920, pág: 127 e 128.
2/5 - Vasco Valente "Cerâmica Artística Portuense dos séculos XVIII e XIX, pág. 72.
Fábrica de Louça de Miragaia, MNSR, Porto, 2008.